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Bolsonaro dribla Tesouro e área de Orçamento para sancionar projeto apoiado por Michelle

Texto que declara a visão monocular (cegueira de um dos olhos) como deficiência para todos os efeitos legais foi sancionado pelo presidente na segunda-feira, com pareceres favoráveis dos ministérios da Economia e da Cidadania

Por Idiana Tomazelli e Anne Warth
Atualização:

BRASÍLIA - Apesar do risco de causar aumento nas despesas com benefícios, o projeto de lei que declara a visão monocular (cegueira de um dos olhos) como deficiência para todos os efeitos legais não foi submetido à análise das secretarias do Tesouro Nacional e de Orçamento Federal, áreas do Ministério da Economia responsáveis pela supervisão da política fiscal do País. A confirmação foi dada ao Estadão/Broadcast em posicionamento oficial da própria pasta.

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A Receita Federal não quis se manifestar, mas documento obtido pela reportagem mostra que a área técnica do Fisco apontou risco de renúncia de receitas. Na semana passada, a Economia emitiu nota dizendo o contrário: “o PL 1615/2019 não envolve renúncia de receita”.

A proposta, patrocinada pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, pode dar aos monoculares acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, ou à aposentadoria de pessoas com deficiência, que tem regras mais brandas do que para trabalhadores em geral. Cálculos internos do governo apontam o risco de aumento na despesa com o BPC no valor de R$ 5 bilhões, uma vez que cerca de 400 mil monoculares podem se habilitar à ajuda.

O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle, em eventono Palácio do Planalto. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil - 16/12/2020

Por apoio à medida, Michelle Bolsonaro fez uma romaria nos ministérios e se encontrou com os ministros Paulo Guedes (Economia) e João Roma (Cidadania), como mostrou a reportagem na semana passada. O projeto foi sancionado na última segunda-feira, 22, pelo presidente Jair Bolsonaro com pareceres favoráveis dos ministérios da Economia e da Cidadania, que manifestaram “nada a se opor” à proposta.

Segundo apurou o Estadão/Broadcast, um parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) apresentou o entendimento de que os benefícios não serão concedidos automaticamente, uma vez que os pedidos passam por avaliação biopsicossocial, para atestar se a deficiência realmente é um impeditivo na vida do cidadão. Foi com base nesse parecer da PGFN, segundo as fontes ouvidas pela reportagem, que os ministérios da Economia e da Cidadania deram sinal verde à sanção.

Há cerca de duas semanas, Bolsonaro chegou a admitir a apoiadores que temia um julgamento político na Câmara, caso sancionasse o projeto. Aliados do presidente alertaram para o risco de crime de responsabilidade, passível de impeachment. “Eu tenho que estar coberto para sancionar”, disse na ocasião. O parecer da PGFN acabou fazendo o papel dessa “cobertura”.

Técnicos ouvidos pela reportagem veem com estranheza o “drible” nas secretarias do Tesouro Nacional e de Orçamento Federal, que deveriam ter sido ouvidas sobre um tema que pode ter impacto nas contas. No ano passado, quando o Congresso tentou ampliar o alcance do BPC, a um custo de R$ 20 bilhões ao ano, o Tesouro se envolveu diretamente nos alertas e nas articulações para tentar desarmar a bomba fiscal deixada pelos parlamentares.

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Além disso, mesmo que nem todos façam jus ao benefício, as boas práticas fiscais recomendam uma estimativa detalhada de quantos, dentro do grupo de monoculares, preenchem os requisitos e podem ter direito à assistência. Esse risco de aumento de gastos, de acordo com os técnicos consultados, precisa ser levado em consideração no momento da decisão.

O Estadão/Broadcast solicitou à PGFN acesso aos pareceres que subsidiaram a sanção do projeto, mas o órgão informou que a abertura dos documentos só é feita com pedido feito via Lei de Acesso à Informação - que dá até 30 dias para o atendimento da requisição.

Renúncias

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A reportagem também questionou a Receita Federal sobre sua posição em relação ao projeto, mas o órgão disse que não se manifestaria. Na semana passada, após o Estadão/Broadcast revelar os riscos fiscais da proposta patrocinada por Michelle, o Ministério da Economia emitiu uma nota oficial afirmando que o projeto “não envolve renúncia de receita”.

Mas a reportagem teve acesso a um documento da Receita Federal em que a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) se manifesta de forma contrária ao projeto. A nota técnica é de 28 de janeiro de 2020, quando a proposta ainda estava em tramitação no Congresso Nacional. Em 18 de fevereiro de 2020, ela foi encaminhada pelo secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, à Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares do Ministério da Economia.

O texto diz que o reconhecimento da visão monocular como deficiência pode resultar em isenções de tributos para esse público, como no Imposto de Renda sobre aposentadorias ou pensões. “A proposta de PLS (projeto de lei do Senado) em análise, para atender às normas vigentes que regulam a matéria, há que estimar a renúncia de receita e indicar as despesas, em idêntico valor, que seriam anuladas.” O parecer também alerta para o risco de impacto nas transferências a Estados e municípios.

O documento cita ainda a posição da comunidade médica pelo entendimento de que a visão monocular não é tecnicamente comparável a uma deficiência visual. “Ao contrário da presente proposição, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) argumentou em diversas ocasiões no sentido de que a cegueira definida como doença grave (...) pode ser concebida somente como a ausência completa do sentido da visão, o que pode incapacitar o indivíduo para o exercício de grande parte de suas atividades habituais. Esse entendimento tem por base a interpretação restritiva, literal e teleológica da norma que outorga a isenção.”

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Alcance

A Lei 14.126/2021 foi sancionada juntamente com o decreto que a regulamentou. O texto do decreto tenta reduzir o alcance da proposta e afirma que a visão monocular será considerada deficiência apenas a partir de uma avaliação biopsicossocial que reconheça a condição, como estabelece o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

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Monoculares, no entanto, podem apelar à Justiça, uma vez que a lei sancionada por Bolsonaro permite a interpretação de que a caracterização da condição de deficiência é automática e não requer qualquer avaliação. Isso amplia o risco de que o governo tenha que arcar com o custo do benefício, já que não há, na legislação do BPC, distinção para pagamento por grau da deficiência - leve, moderada ou grave.

Um projeto semelhante já havia sido aprovado pelo Congresso e vetado pela presidência da República em 2008, durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva. À época, a Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil recomendou o veto integral pelo texto “contrariar o interesse público”. A área ouviu o posicionamento da então Secretaria Especial dos Direitos Humanos e dos Ministérios da Justiça, da Saúde e do extinto Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

A mensagem de veto afirmava que, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde - Décima Revisão (CID-10), o enquadramento da visão monocular como deficiência dependia da acuidade visual do olho único - como argumentam os movimentos que representam pessoas com deficiência. “O seu enquadramento sem a mencionada diferenciação causará distorções nas ações afirmativas nesta seara, prejudicando pessoas com outras deficiências.”

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