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'Brasil devia ver Biden como uma oportunidade', diz Rubens Ricupero

Para diplomata e ex-ministro do Itamar Franco, o País precisa entender a vitória do democrata nos EUA não como ameaça, mas como chance de rever a relação bilateral

Por Sonia Racy
Atualização:

Jurista, historiador, economista e diplomata, Rubens Ricupero* também vestiu, ao longo de sua carreira, o uniforme de ambientalista. Nas últimas semanas, atento a temas como Amazônia e Pantanal, advertiu que a derrota de Donald Trump nos EUA enfraqueceria o governo Bolsonaro – e que as mudanças que virão com o democrata Joe Biden recomendam repensar “a partir do zero” as relações de Brasília com Washington

Nesta conversa com o programa Cenários, parceria do Estadão com o Banco Safra, o diplomata-ambientalista dá um passo adiante: o governo Bolsonaro deveria entender a ascensão de Biden “não como ameaça, mas como oportunidade. (...) Os EUA, maior potência do mundo, estão mudando. Não seria hora de repensarmos o que estamos fazendo na Amazônia, no Meio Ambiente?” Nem precisaria ser uma mudança radical, acrescenta. “Já houve até notícia de que ele está disposto a começar a relação com o Brasil como se fosse um caderno de páginas em branco”. Sempre realista, Ricupero não vê em Brasília “disposição de mudar”, mas diz ter “esperança”, ao menos, de algo diferente em 2022. 

'Aqui, já estão atirando pedra no Biden antes que ele faça qualquer coisa', diz Ricupero. Foto: Werther Santana/Estadão

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Que mudanças podemos esperar com essa troca de poder nos EUA?

No curto prazo, falta o reconhecimento formal de Trump de que perdeu. No longo, é saber como será o novo governo. Mesmo obrigado a deixar o poder, ele nunca vai admitir que perdeu a eleição. É sabido que ele fracassou em inúmeros negócios e nunca admitiu. Para esse tipo de pessoas, a realidade é irrelevante. 

Trump tem, me parece, um problema grave de personalidade. Não sei se o sr. sabe, mas ele falsificou a prova com a qual entrou na universidade. 

Esse tipo de personalidade não aceita a verdade. Me lembra aquele filme alemão sobre os últimos dias de Hitler, que circula no Facebook... Os russos já estão entrando em Berlim e ninguém tem coragem de dizer ao führer que acabou. Mas, voltando aos EUA, os republicanos estão fazendo um jogo de cena com Trump, que vai durar alguns dias mais. Já ouvi uma versão de que estão esperando para fazer o que fizeram com (o presidente) Richard Nixon (em 1974). Ele estava perdido, no processo de impeachment, e o senador Barry Goldwater, então o mais respeitado dos republicanos, reuniu uma delegação de senadores e deputados e foi à Casa Branca dizer ao presidente: “Olha, o jogo acabou. Ou você sai ou nós vamos votar a favor do impeachment”. Nixon renunciou. Na época eu estava lá, era chefe do setor político da Embaixada brasileira. Voltando ao Trump, há quem ache que ele vai montar um movimento de apoio, e tornar a vida do governo democrata mais difícil. 

Há analistas dizendo que o Senado pode cair nas mãos dos democratas. Aí seria o céu para o Joe Biden... 

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Mas é difícil, os republicanos têm tido um domínio muito grande da maioria dos Estados. Eles já têm 48 votos na Casa, próximos dos 50. Os democratas precisariam ganhar as duas vagas da Geórgia, que tem eleição dia 5 de janeiro. Isso é remoto. Mas se acontecer, fica 50 a 50 e o voto de desempate caberá à presidente da Casa, que será a vice-presidente Kamala Harris.

E quais reflexos o sr. imagina, disso tudo, para a política mundial?

Para o Biden vai ser mais fácil fazer uma grande mudança nas relações internacionais do que internamente. Dentro do país, ele enfrentará a resistência dos senadores conservadores. Por exemplo, ele quer aumentar a faixa de impostos para grandes empresas, mas isso não passa de jeito nenhum. Já no cenário externo, as coisas sempre dependem mais da ação pessoal do presidente. 

Dentro do país ele faz muito pouco sem apoio do Congresso, né?

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Ele pode avançar se construir um consenso com os republicanos. Não é impossível. Por exemplo, no pacote de estímulo econômico, que os dois lados querem aprovar para enfrentar o agravamento da pandemia. Aí, a vantagem do Biden é que ele foi senador por 36 anos, sempre um homem sem arestas, com muitas amizades no campo republicano. É amigo, por exemplo, do líder republicano, o Mitch McConnell, chama-o pelo primeiro nome. Então tem uma facilidades que o Obama e o Bill Clinton não tinham. Lembro-me de outro precedente, de quando o John Kennedy foi eleito (em 1960) e todos esperavam que ele fizesse uma revolução no direito dos negros. Ele conseguiu muito pouco, porque era um liberal, o que lá significa “esquerdista”. Quando foi assassinado e o vice Johnson tomou seu lugar, foi o contrário. Johnson dominava o Senado com mão de ferro e se convenceu de que tinha de fazer essa mudança, senão haveria uma guerra civil. 

O Biden tem essa qualidade?

Pode ser, ele é um conciliador. Não sei se vai conseguir porque as coisas hoje mudaram muito. Mas veja, Nixon normalizou as relações com a China por ser um anticomunista visceral. Ninguém suspeitaria dele. 

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E o que muda na política externa?

Começo lembrando que os EUA são o único país do mundo que pauta a agenda internacional. E agora a agenda vai ser meio ambiente. Biden já disse que no seu primeiro dia ele volta ao Acordo de Paris. Vai defender a economia verde, o carbono zero, o combate à pandemia com apoio da ciência. E ainda uma política de igualdade das mulheres e a questão do aborto. Enfim, a política mundial vai ser radicalmente diferente. Alguma coisa vai continuar, como a rivalidade com a China, mas ele já avisou também que, no comércio, não usaria a tarifa unilateral. 

Os EUA estão completamente quebrados, com déficit público gigante. Acha que o Biden pode ser a pessoa que, legitimamente, vai aumentar os impostos?

Ele vai tentar. Já afirmou, em campanha, que quer aumentar a progressividade do imposto de renda. Nada muito radical, ele quer passar a faixa mais alta de 36% para 39,5%.

E quanto a baixar impostos? Seria uma maneira republicana de arrecadar mais. Ele poderia mexer nisso? 

Tenho a impressão de que não. Ele tem uma proposta de reduzir os impostos para quem ganha até US$ 40 mil/ano, que lá é a pequena classe média. Mas a grande dificuldade vai ser financiar o déficit, que é gigante. E tem de achar uma maneira de criar um novo pacote de ajuda, porque a covid continua lá numa segunda onda, já com mais de 120 mil casos por dia. E ele vai convocar uma cúpula em favor da democracia, o Summit for Democracy, convidando todos os chefes de governo para debater três temas: aumento do autoritarismo, direitos humanos e a luta contra a corrupção. Imagine como o governo brasileiro vai ficar nessa agenda. Nem um pouco confortável. 

E como vão ficar as relações diretas entre Brasil e EUA?

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Do lado do Biden, eu não temo nada. Ele conhece o Brasil, foi duas vezes presidente da comissão de relações exteriores do Senado. Já houve até notícia de que ele está disposto a começar a relação com o Brasil como se fosse um caderno de páginas em branco. Mas aqui já estão atirando pedra nele antes que ele faça qualquer coisa. 

Está falando da Amazônia?

As críticas a declarações dele sobre esse tema são gratuitas. Ele mencionou a Amazônia como um fato isolado num debate sobre um programa de ajuda de US$ 20 bilhões – e só depois comentou que, se continuassem a destruí-la, haveria consequências negativas. Mas, veja, hoje em dia um país tem que saber aceitar certas críticas sem se comportar de forma belicosa. Declarações como essa da pólvora parecem de um menino adolescente. Ser cordial, dialogar, não precisa mais que isso. Só que essas qualidades em Brasília são escassas.

Isso me lembra uma pergunta que fiz há alguns anos ao ministro da Economia argentino Domingo Cavallo. Queria saber a diferença entre Brasil e Argentina e ele disse: “Vocês têm o samba, nós temos o tango. Quando nós afundamos, afundamos de fato. Vocês nunca vão nem muito para cima nem muito para baixo”.

Gostei da resposta, não conhecia. E devo dizer que isso era mais verdade no passado do que agora...

Mas ele falava da área econômica. O sr. tem esperança de que ela possa ser mudada no curto prazo?

O que é esperança? Se você não tiver confiança de que amanhã vai ser melhor, fica difícil. Nós temos razão para ter esperança. Mas não espero muito desse governo. Não vejo nele disposição para mudar.

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Pode explicar melhor?

Acho que um governo sensato, no Brasil de hoje, receberia a eleição do Biden não como uma ameaça mas como uma oportunidade. No sentido de dizer “olha, os EUA, maior potência do mundo, estão mudando, não seria hora de repensar o que estamos fazendo na Amazônia, Pantanal, esse desmantelamento no Meio Ambiente?” 

Acha que o governo faria isso?

Nem precisaria mudar de uma maneira radical. Veja o vice-presidente (Hamilton) Mourão, convidando embaixadores a visitar a Amazônia. Foi o primeiro gesto amistoso que vi nesse governo. Homens como ele, o ministro da Infraestrutura, que quer atrair investimentos, a ministra da Agricultura, que quer abrir mercados, não faltam, no governo. Infelizmente, o chefe do governo, que é quem dá as ordens, não tem essa visão. Quando digo que tenho esperança, é para depois das eleições de 2022.

O sr. não mencionou o ministro da Economia.

Deliberadamente. Ele decepcionou muito. Exagerou nas promessas de zerar o déficit, de avançar as privatizações. Ultimamente, o ministro está se parecendo cada vez mais com o chefe. E como lembrou o (José Roberto) Mendonça de Barros, em outra entrevista sua, pela primeira vez temos uma equipe econômica que perdeu a autoridade e o prestígio. Isso é grave. 

*DIPLOMATA E JURISTA, FOI MINISTRO DO MEIO AMBIENTE E DA FAZENDA NO GOVERNO ITAMAR FRANCO, EMBAIXADOR NOS EUA E NA ITÁLIA E SECRETÁRIO-GERAL DA UNCTAD, EM GENEBRA. 

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