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Opinião|Brasil precisa reconhecer que tratar do futuro implica ficar em paz com o passado

Para além das decisões judiciais acerca de pessoas específicas, houve ou não casos gritantes de corrupção no passado do País?

Atualização:

Defrontado com a Inquisição para que renegasse suas ideias acerca do funcionamento do que hoje conhecemos como sistema solar, Galileu Galilei teria se submetido à determinação a ele imposta, mas não sem antes exclamar “Eppur si muove!”, o que podia ser entendido como: “O.k., vocês venceram, mas isso não muda o fato de que a Terra se move em torno do Sol – e não o contrário”.

É impossível não lembrar da frase ao pensar sobre o significado das reviravoltas da nossa Justiça, notadamente a partir de decisões do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), acerca das denúncias de corrupção julgadas em anos anteriores e, posteriormente, anuladas em razão de vícios processuais. É natural que quem foi por elas beneficiado reclame inocência. Não é isso, contudo, que queremos discutir hoje neste espaço, mas outra coisa: o que foi que aconteceu realmente no período que foi objeto daquelas decisões? Para o debate que o País terá de encarar em 2022, é isto o que interessa: “Aquilo tudo” aconteceu? Ou seja, para além das decisões judiciais acerca de pessoas específicas, houve ou não casos gritantes de corrupção naqueles anos? Quais foram os fatos?

É impossível não lembrar das decisões sobre corrupção tomadas pelo STF em anos anteriores. Foto: Dida Sampaio/Estadao

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Nestes tempos de pandemia, estou devorando o livro A Organização (Companhia das Letras), de Malu Gaspar. Daqui a 50 anos, quando os historiadores se debruçarem sobre estas nossas duas primeiras décadas de século, tão conturbadas, creio que será leitura obrigatória – e não o voto enfadonho das diversas decisões judiciais, contraditórias entre si.

Cito M. Gaspar, que menciona o principal executivo da empresa em questão num discurso de final do ano para os principais executivos do grupo (página 84): “Mostrava fotos da equipe, citando o nome de cada um, e pedia aplausos aos que iam aparecendo na tela. Foi quando surgiu a figura de um senhor grisalho. ‘Gente, este é o Ferreira. Quem sabe o que o Ferreira faz bate palmas para ele! Quem não sabe... melhor continuar não sabendo!’. A plateia caiu na gargalhada. Praticamente todos sabiam quem era”. Nestas linhas aparece o fundo de nossa tragédia: a complacência com o ilícito, a graça diante do inaceitável, a mistura entre o legal e o ilegal, o “por trás do pano” etc. Em resumo, a antítese do que seja uma República. Sim, o personagem citado era encarregado da função que o leitor imaginou que tinha: fazer aquilo que não era dito, mas que todos sabiam que era feito. E o discurso foi de 1990! Ou seja, bem antes de tantas coisas ocorridas muito tempo depois. A matriz, porém, estava lá. Todos sabemos que, anos depois, aquilo que fez toda a plateia cair na gargalhada seria levado ao paroxismo.

Na página 164 do livro, a autora reproduz o diálogo do então presidente Lula com o falecido José E. Dutra, o presidente da Petrobrás que estava fazendo jogo duro para substituir Rogério Manso, diretor de Abastecimento da empresa e que era pressionado por um notório personagem da política da época (hoje falecido) para entregar a lista das empresas com as quais a área fazia negócio, ao que o diretor, republicanamente, respondeu: “Não vou entregar lista nenhuma. Eu não sei quem mandou vocês aqui, mas podem voltar para essa pessoa e dizer que não vai rolar”. Quem rolou, porém, foi o próprio diretor... Pouco depois, Lula teria chamado o presidente da Petrobrás e dito: “Dutra, se o Paulo Roberto Costa não estiver nomeado em uma semana, eu vou demitir e trocar todos os conselheiros da Petrobrás”. O resto é História.

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O Brasil merece um futuro melhor do que este presente abjeto, mas tratar do futuro implica ficar em paz com os fatos do passado – e não deixar o passado em paz. Independentemente da Justiça, para que o que o livro expõe não se repita mais, o que o País precisa avaliar é: vamos reconhecer que tudo isso aconteceu? Ou fazer de conta (e o nome disso é “negacionismo”) de que tudo não passou de uma invenção? Neste caso, o livro da Malu deveria sair da estante de Política das livrarias e ir para a seção de ficção.

*ECONOMISTA

Opinião por Fabio Giambiagi
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