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''Bufunfa'' e virtudes cívicas

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Depois de quase uma década, voltei à África do Sul para participar de evento relativo a seminário sobre a reforma da política comercial sul-africana. De novo, ficou dramaticamente ressaltado o paralelismo entre as experiências recentes naquele país e no Brasil. Em ambos, processos de transição política levaram a reformulações radicais, com a consolidação no poder de forças com longa tradição oposicionista. É claro que na África do Sul a transição foi muito mais dramática, com a coalizão liderada pelo Congresso Nacional Africano (CNA) sucedendo os partidos da minoria branca que sustentaram durante séculos um regime de opressão racial que culminou no apartheid. O Partido dos Trabalhadores (PT), antes que fosse irremediavelmente comprometido por seu envolvimento no mensalão e seu pacto com o fisiologismo tradicionalista, tinha metas ambiciosas quanto à renovação da vida partidária brasileira. Não era o CNA, mas era novidade importante na vida política do País. Os ventos da corrupção abalaram os dois partidos - no caso do CNA, de forma talvez menos intensa. As políticas externas dos dois países são condicionadas por suas vizinhanças. Em ambos os casos, são relevantes os custos gerados pelo exercício da liderança regional. As dificuldades enfrentadas pela diplomacia brasileira nas relações com Bolívia, Paraguai, Equador, Venezuela e Argentina são de menor importância quando comparadas aos graves problemas suscitados para a diplomacia sul-africana pela situação no Zimbábue, em decomposição sob o regime ditatorial do provecto Robert Mugabe. A vizinhança de economias extremamente subdesenvolvidas multiplica a demanda por concessões do irmão maior, que está longe de ser opulento. Muitos dos problemas enfrentados pela África do Sul em relação à União Aduaneira do Sul da África (Sacu, na sigla em inglês) são espelhados nas dificuldades de operação do Mercosul. O paralelismo mais interessante entre os dois países, entretanto, tem que ver com a conciliação das tensões entre a condução de políticas macroeconômicas prudentes e as demandas por crescimento ou redistribuição em economias marcadas por grande iniquidade na distribuição de riqueza e de renda. As duas experiências nacionais registram histórias de sucesso na manutenção da estabilidade macroeconômica, ao contrário do que poderia ser antecipado com base em programas partidários e declarações de intenções. A África do Sul pós-apartheid manteve políticas macroeconômicas que privilegiaram a estabilidade - inflação e contas externas - e enfrentaram com sucesso ataques especulativos importantes contra o rand (moeda corrente no país). No Brasil, em 2002, o presidente Lula abandonou o ideário econômico sem pé nem cabeça que constava do programa do PT e, a despeito de vacilações e de maus conselhos de pajés calejados por insucessos anteriores, manteve o apoio às políticas prudentes propostas pelo Ministério da Fazenda - até a saída de Palocci - e pelo Banco Central. Nos dois países, entretanto, há sinais de que a estratégia de combinar políticas macroeconômicas "ortodoxas" com discurso político contra o "establishment" está sendo abandonada, em grande medida por motivação eleitoral. As recém realizadas eleições presidenciais na África resultaram, em meio a turbulências associadas à denúncia de práticas corruptas, na escolha de Jacob Zuma. Há sinais claros de enfraquecimento da coalizão que, no CNA, privilegiava políticas relativamente "liberais". Cogita-se aumentar a proteção à indústria doméstica, questionam-se critérios de escolha de cargos-chave na área econômica com base em argumentos raciais. O emblemático ex-ministro da Fazenda Trevor Manuel foi feito ministro do Planejamento, diretamente subordinado a Zuma, posição que para muitos minimiza a sua influência. No Brasil, o ciclo eleitoral estimula o presidente Lula a reabilitar ideias que parecia haver repudiado desde 2002. A precoce campanha eleitoral desencadeada pelo presidente é movida a aumento de gastos públicos - em muitos casos recorrentes, como por exemplo nos reajustes do funcionalismo - e pela expansão imprudente de empréstimos de bancos públicos com base em incitações patrióticas. A apreciação do real serve de pano de fundo ao habitual coro de lamentações e ao diagnóstico equivocado de doença holandesa, já refutado pelos fatos no passado. A indústria brasileira tem demonstrado grande capacidade de adaptação a eventuais instabilidades macroeconômicas. Seria a hora de abandonar o chororô cambial como instrumento de lobby para a extração de benesses indevidas. Em meio a essa guinada do presidente, estabeleceu-se clima de assalto ao caixa, de que se deve aproveitar "enquanto o Brás é tesoureiro". A ação dos chamados "interesses especiais" culminou recentemente na defesa, com unhas e dentes, de interpretação relativa ao crédito-prêmio do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que redundaria em ganhos para os exportadores pleiteantes de muitas dezenas e, talvez, de um par de centenas de bilhões de reais. Foi montada uma patranha no Congresso, mas o Supremo Tribunal Federal considerou, por unanimidade, o pleito indevido. A decisão gerou reação destemperada de pareceristas frustrados que chegaram a mencionar irresponsabilidade e ignorância por parte do Judiciário. Obstados na tentativa de ordenha da viúva, os lobistas da "nossa indústria" se agarram a uso peculiar da gíria "bufunfa". A interpretação que parece vigorar é que, quando você ganha dinheiro, é "bufunfa", quando eu ganho é virtude cívica. Que tal um pouco mais de seriedade? *Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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