Burnout cresce na Faria Lima e castiga profissionais do mercado financeiro

Com empresas globais, setor financeiro repete padrão de rotinas exaustivas no Brasil com jornadas de 18 horas por dia, noites sem dormir e meses sem folga

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Por Luciana Dyniewicz
4 min de leitura

Uma carga de trabalho de no máximo 80 horas por semana – 16 horas por dia, considerando de segunda a sexta-feira – foi o pedido feito por analistas juniores no exterior à direção do Goldman Sachs. No início do ano, eles divulgaram uma série de slides em que mostravam as condições extenuantes de trabalho dos novatos no banco de investimentos. Em média, eles trabalharam 98 horas por semana (19 horas e 36 minutos por dia) em janeiro. Os funcionários ainda apontaram queda nas condições de saúde mental. Numa escala de zero a dez, a nota atribuída ao bem-estar foi de 2,8. Antes de ingressarem no banco, era de 8,8.

Analistas juniores do Goldman Sachs no exterior revelaram em slides condições extenuantes de trabalho Foto: Brendan McDermid/ Reuters

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O documento repercutiu no mercado financeiro globalmente. O Goldman Sachs reconheceu, em nota, que seus funcionários estão “muito ocupados”. “Um ano após o início da covid, as pessoas estão bastante sobrecarregadas e é por isso que estamos ouvindo suas preocupações e tomando medidas para resolver o problema”, publicou o banco, sem dar detalhes.

Uma semana após os slides dos funcionários do Goldman se tornarem conhecidos, o Citigroup se mostrou preocupado com a situação de seus trabalhadores. A presidente global do grupo, Jane Fraser, enviou, no fim de março, um e-mail aos colaboradores em que afirmava que “a difícil separação entre casa e trabalho e o implacável expediente de trabalho pandêmico afetaram nosso bem-estar”.

Jane disse que a situação era “insustentável” e estabeleceu mudanças, como o fim das reuniões internas por vídeo às sextas-feiras. Pediu também para que fossem limitadas as ligações fora do horário de trabalho e nos fins de semana – “lembram deles?”, escreveu.

Com companhias globais, o mercado financeiro repete o padrão de rotinas exaustivas no Brasil, principalmente entre os novatos. Na avenida Faria Lima – que concentra o setor em São Paulo –, histórias de noites sem dormir, meses sem um único dia de folga e burnouts são frequentes. Segundo a International Stress Management Association (associação internacional de prevenção ao estresse) no Brasil, profissionais do setor financeiro ficam em terceiro lugar no ranking de incidência de burnout, depois de trabalhadores em segurança, na primeira posição, e de controladores de voo e motoristas de ônibus urbano, empatados, na segunda.

“Eu cuidava de bilhões de reais. Se o cliente queria algo para ontem, não tinha como dizer ‘meu horário já deu’”, diz um profissional que deixou o setor no meio da pandemia.

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Apesar das condições estressantes do trabalho, as remunerações elevadas – com bônus que podem equivaler a mais do que a pessoa recebeu durante todo o ano –, o status e a possibilidade de atuar nas maiores operações financeiras e corporativas do País atraem os profissionais. “Tem uma glamourização, mas também tem a oportunidade de trabalhar em casos incríveis”, diz um profissional.

Esse pacote que engloba jornadas exaustivas, salários altos e estar no ponto nevrálgico do mercado financeiro não é exclusivo a profissionais de bancos e se estende a advogados dos maiores escritórios do País, que preparam os documentos para os negócios serem fechados.

Segundo uma advogada de um desses escritórios, não é raro ter apenas dois dias para entregar documentos de mais de cem páginas. “Não tem a possibilidade de eu falar para os advogados seniores: ‘não deu porque eu estava tocando três operações ao mesmo tempo’.”

Com prazos apertados para o fechamento de acordos e a necessidade de negócios serem anunciados antes da abertura da Bolsa de Valores, os profissionais chegam a dormir três horas por noite. Um advogado afirma já ter trabalhado um mês sem nenhuma folga, enquanto outro destaca que, em média, deixa de dormir três noites por mês por precisar finalizar algo.

Nesse ponto, os profissionais consideram que a quarentena tem até tornado a vida um pouco menos desconfortável. “Chego a ver como vantagem virar a noite trabalhando em casa. É mais confortável do que no escritório”, diz uma fonte. Por outro lado, se antes já era difícil trabalhar apenas durante o horário comercial, agora isso se tornou impossível. “O pessoal perdeu a noção da hora. Tem call (reunião por telefone) que mandam invite (convite) para entrar às 23 horas.”

Segundo um trabalhador, há casos em que é preciso acompanhar mais de uma reunião virtual simultaneamente – cada uma em um fone de ouvido. Isso porque, dependendo do tamanho da operação, são mais de cem pessoas participando da reunião, o que impede o profissional de remanejar a agenda.

O Estadão procurou os principais bancos e escritórios de advocacia do País. Nenhum quis comentar o assunto.

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Jornada diária vai a 18 horas na área de fusões

As jornadas de profissionais da área de fusão e aquisição chegam a 18 horas quando estão tocando várias operações concomitantemente, dizem os profissionais. Em épocas tranquilas, são 10 horas de trabalho por dia no mínimo. Nesses períodos, talvez até fosse possível encerrar o expediente mais cedo, mas, ainda hoje, isso é mal visto.

“De forma geral, uma pessoa não consegue fazer todas as tarefas em oito horas. Mas, se você consegue terminar antes, também não pega bem. Existe a cultura de que você está desmotivado se termina cedo”, diz um profissional que pediu demissão no ano passado. Essa mesma pessoa afirma que há a necessidade de mostrar estar disponível ao trabalho 24 horas por dia, principalmente entre os mais novos. “Eles acabam mandando e-mail às 23h, por exemplo.” 

Para outro profissional, porém, é exigido de forma velada que você esteja online nesse horário. “Mesmo que queira ser mais ágil para sair cedo, não posso. A gente não gerencia nosso tempo. Tem de estar à disposição sempre. Antes da pandemia, havia um horário comercial bastante estendido. Agora, são 24 horas por dia.” 

Um profissional conta que, em um banco em que trabalhou, até havia certa preocupação de mudar essa cultura e pesquisas sobre bem-estar eram frequentes. “Mas alguns diretores não as levavam a sério.”