02 de junho de 2020 | 15h28
BRASÍLIA - Conhecido pela alcunha de “choque de energia barata”, dada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o Novo Mercado de Gás gerou uma guerra política no Amazonas.
Um projeto de lei com medidas que seguem o modelo do governo federal foi aprovado na Assembleia Legislativa, mas o Estado vetou a proposta. Enquanto o deputado Josué Neto (PRTB) tenta angariar votos para derrubar o veto, o governador Wilson Lima (PSC) afirma que a proposta é inconstitucional. No centro da discussão está o futuro da Cigás, distribuidora na qual o Estado tem participação.
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De autoria de Josué Neto, presidente da Assembleia, o projeto regula o serviço de distribuição de gás e altera condições para enquadramento de consumidores livres, autoprodutores e autoimportadores no Amazonas, o que reduziria os valores a serem pagos à distribuidora pela população e pela indústria. Apresentado no dia 2 de abril, ele foi aprovado em plenário virtual uma semana depois.
Em defesa do proposta, o deputado argumenta que a Cigás não investe o suficiente para atender as necessidades do Amazonas. Segundo ele, grandes empresas de petróleo não investem no Estado, dono de grandes reservas em terra, devido a uma regulação que favorece a estatal. “O povo não tem nenhuma alternativa de emprego e renda, principalmente no interior do Estado, porque fica tudo na mão de uma única empresa”, afirmou.
Para derrubar o veto governamental, é preciso obter 13 votos, mas Josué Neto conta com apenas nove deputados - mesmo depois de uma aprovação quase unânime na Casa. O veto passa a trancar a pauta da Assembleia Legislativa a partir do dia 5.
O governador Wilson Lima afirmou que deveria ter sido ouvido sobre o projeto, aprovado em tempo recorde, na avaliação dele. O veto, segundo ele, seguiu parecer da Procuradoria-Geral do Estado. Ele apontou vício de iniciativa – caberia apenas ao Estado apresentar uma lei sobre o tema, e não à Assembleia. “Como pode um projeto sobre um tema tão importante, com 57 páginas, ser aprovado em tão pouco tempo, sem discussão?”, questionou.
Segundo ele, o problema do Estado não é a distribuição de gás, mas sim a produção. “Vão distribuir o quê, se não tem gás para ser distribuído?”, questionou. “De fato temos a maior reserva de gás em terra no Brasil, mas isso está no subsolo. Primeiro, é preciso viabilizar a chegada desse gás a Manaus e ao mercado consumidor. Precisamos de dutos e barcaças para transportar esse gás e de uma estação de liquefação, o que ainda não temos”, explicou o governador.
Wilson Lima diz ainda que é seu dever, como governador, preservar a Cigás, da qual o Estado é sócio. O Amazonas detém 51% das ações ordinárias, mas apenas 17% do capital social e, consequentemente, é essa a parcela de dividendos da companhia que cabe ao governo. “Preciso proteger um ativo do Estado e impedir uma lei que quebre esse patrimônio. Essa lei pode reduzir o valor da Cigás em 10% do que é hoje. Isso coloca em risco as operações da empresa. Quem vai investir em um Estado com essa insegurança jurídica?”
A Cigás faturou R$ 2,6 bilhões no ano passado, dos quais 67% ficaram com a Petrobrás e a Engie, respectivamente produtora e transportadora, 28% com o Estado, em tributos e royalties, e 4,5% com a empresa, disse o governador.
O lucro líquido da companhia, segundo Lima, foi de R$ 60 milhões, e serviu para pagamentos de dividendos e realização de investimentos. O Estado do Amazonas arrecadou R$ 540 milhões em impostos e algo entre R$ 13 milhões e R$ 15 milhões em dividendos.
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02 de junho de 2020 | 15h55
BRASÍLIA - A Cigás, distribuidora estatal de gás do Amazonas, esteve no centro de um processo de investigação do Tribunal de Contas do Estado (TCE-AM). A apuração teve início com uma denúncia da própria agência reguladora do Estado, que acusou a companhia de aumentar o pagamento de dividendos – cujo mínimo é de 75% do lucro, segundo o estatuto – à custa da redução dos investimentos.
Poucos dias depois da representação, a Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados e Contratados do Estado do Amazonas (Arsepam) acabou desistindo do processo, mas o TCE manteve a apuração. Segundo o tribunal, as regras do Estado sobre a distribuição de gás não são claras e afastam investimentos de produtoras.
Em seu voto, o conselheiro Ari Jorge Moutinho da Costa Júnior enviou informações à Polícia Federal, ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Ministério Público Federal (MPF) para que haja uma investigação mais ampla sobre a empresa. Ele cobrou transparência da empresa em relação a governança, remuneração e composição acionária. Recomendou ainda a sanção do projeto de lei aprovado pelos deputados estaduais, que abre o mercado de gás no Estado.
“Nos últimos dois anos, o investimento da companhia no Estado foi zero. Então, quero entender a razão da perda de interesse da Arsepam em fiscalizar a empresa”, afirmou o conselheiro. “É surreal e irresponsável a postura do governo do Amazonas ao manter o veto sobre uma proposta que poderia gerar empregos e renda em um momento de crise e pandemia.”
Em nota, o governo do Amazonas informou que a representação foi protocolada para apurar itens do estatuto da Cigás que, “em caráter inicial”, poderiam ser aprimorados. “Contudo, após o protocolo no TCE, reputamos necessário aprofundar a análise técnica em pontos específicos de tal estatuto, em contraponto às normativas do setor”, informou. Um grupo de trabalho foi criado na agência para promover estudos técnicos e jurídicos sobre o tema, diz o comunicado.
Para o governo, o nível de investimentos da empresa está adequado – desde o início das operações, em 2010, até março, foram R$ 271 milhões e 135 quilômetros de gasodutos construídos. A previsão, segundo a nota, é de investimentos de R$ 170 milhões nos próximos anos e mais 140 km de dutos. “Vale ressaltar que a companhia, enquanto concessionária de serviço público, deve observar o princípio da modicidade tarifária. Assim, o volume de investimentos deve seguir um racional que garanta que o serviço seja acessível à coletividade”, informou o governo.
O projeto de lei que abre o mercado de gás no Amazonas tem defensores e críticos também no meio empresarial. A Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia (Abrace) apoia o Novo Mercado de Gás. Para o presidente da entidade, Paulo Pedrosa, a proposta promove a competição entre os Estados em busca de investimentos da indústria, reduz o preço do insumo e enfrenta monopólios locais. “A energia do Amazonas custa R$ 4 bilhões na forma de subsídios e impostos sobre eles. A oferta de gás competitivo no Amazonas pode diminuir o custo da energia no Brasil inteiro”, afirmou Pedrosa.
A Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás) avalia que o projeto de lei é inconstitucional, aumenta o risco de judicialização e gera um desequilíbrio financeiro do contrato de concessão existente, inviabilizando a prestação de serviços nas regras pactuadas previamente. “Basicamente, o PL rompe com o contrato de concessão em vigor e altera, por exemplo, o arcabouço regulatório para as figuras de autoprodutor, autoimportador e consumidor livre. A Abegás entende que a movimentação do gás é uma prerrogativa das distribuidoras e que impor exceções que deixem de remunerar esses serviços, em favor de alguns segmentos, certamente irá comprometer o processo de expansão e de universalização dos serviços locais de gás canalizado.”
Procurada, a Cigás não se pronunciou até a publicação da reportagem.
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