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Circo latino, o maior espetáculo da Terra

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Por Rolf Kuntz
Atualização:

O caminho da redenção latino-americana - e mundial, por que não? - passa pela cidade de Cuenca, ou melhor, Santa Ana de los Ríos de Cuenca, a terceira maior do Equador, situada a 2.535 metros acima do mar, com 400 mil habitantes e declarada, pela Unesco, patrimônio cultural da humanidade. De olho nas escolas de samba ou ocupado em seguir um trio elétrico, o leitor pode não ter notado a Declaração de Cuenca, assinada por presidentes de Legislativos do Equador, da Argentina, da Bolívia, da Colômbia, de Cuba e do México. Nenhum representante do Brasil apareceu, talvez porque a dose de latinoamericanidad, com três ministros brasileiros levando um baile da ministra argentina da Produção, Débora Giorgi, tenha sido suficiente para a semana. Mas foi uma pena. O mundo ainda não aprendeu a valorizar o circo latino-americano. O diário El País, de Madri, é uma exceção. Noticiou a reunião com o título "Integração contra a crise" e tratou com seriedade a reunião de chefes de Poderes Legislativos - um deles o vice-presidente da República e presidente do Senado argentino, Julio César Cleto Cobos. Impossível ler a notícia no jornal sem procurar na internet a íntegra do manifesto. Os autores da Declaração recomendam, entre outras ações, a revisão da dívida externa de cada país latino-americano, a criação de conselhos econômicos e sociais formados por trabalhadores, empresários e governos, iniciativas para criação de uma banca supranacional para atender às necessidades da região e a proposição de sistemas de fiscalização financeira. As funções dos conselhos econômicos e sociais permanecem um mistério: nesse tópico só se menciona a conveniência de privilegiar o microcrédito. Outras passagens também desafiam o poder de interpretação do leitor comum. Um bom exemplo: "Traduzir nossa vocação latino-americana em maior integração regional, ressaltando nossas tradições, costumes e idiomas comuns (?), plasmando-o (?) em nossos planos educativos, que nos permita (?) criar uma nova ordem mundial mais justa e equitativa." Deve haver um significado por trás desse palavrório, mas, para revelá-lo, alguém com alguma competência deveria ter cuidado da redação. Pelo menos isso a diplomacia brasileira garante, mas a reunião não era de diplomatas. A Declaração de Cuenca, redigida numa linguagem abaixo de precária, apenas torna mais evidente a qualidade das bandeiras de integração regional. Documentos produzidos com maior profissionalismo às vezes disfarçam essa qualidade, mas não alteram a sua substância. Leia-se, por exemplo, o comunicado conjunto dos chefes de Estado do Mercosul, divulgado depois da última cúpula, realizada na Costa do Sauipe, em dezembro. O texto é profissional e dá uma aparência de seriedade a uma reunião vazia, mas não disfarça o fracasso do Brasil, na presidência temporária do bloco, diante de problemas como a cobrança múltipla da Tarifa Externa Comum. Os limites da integração latino-americana são visíveis no protecionismo comercial, na insegurança dos investimentos e no indisfarçável fracasso do Mercosul como união aduaneira. A oratória cantinflesca pode ser engraçada e realça os aspectos circenses da política regional. Parte importante do espetáculo é o esforço do governo brasileiro para fazer dos latino-americanos parceiros comerciais prioritários. A intensificação do comércio regional é desejável, sem dúvida, mas ninguém deveria ignorar suas limitações. Numa crise como a atual, parceiros dependentes da exportação de produtos primários são afetados pela redução das cotações e perdem capacidade de compra. Isso já ocorreu e é evidenciado nas últimas análises do comércio regional. Embora esteja em recessão, a União Europeia recuperou importância relativa como destino das exportações brasileiras. Quanto ao mercado argentino, o maior comprador de produtos brasileiros na América Latina, está cada vez mais fechado. As medidas protecionistas aumentaram desde o segundo semestre do ano passado e não serão revertidas facilmente. Brasília tem sido leniente com o protecionismo da Argentina e de outros parceiros sul-americanos, como se disso dependessem a integração regional e a imaginária liderança brasileira. Circo é isso. Mas o circo ainda se torna mambembe, quando três ministros argentinos vão a Brasília para defender o protecionismo, três brasileiros se curvam e um deles, o da Fazenda, argumenta com números errados. *Rolf Kuntz é jornalista

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