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Coisa de compadres

A própria estultice da JBS tem tudo para ser a chave para reavaliar a premiação excessiva

Por Luís Eduardo Assis
Atualização:

Brazil é um filme de ficção científica de 1985. O diretor, Terry Gilliam, retrata uma visão distópica de um futuro em que predomina o domínio do Estado sobre os cidadãos. Em comum com o Brasil que conhecemos, o filme traz o apreço das mulheres pelas operações plásticas, o tema musical mais conhecido de Ary Barroso (daí o título) e o hábito comezinho de buscar vantagens por meio de contatos com as pessoas certas no governo. Enquanto as operações plásticas satisfazem vaidades e a Aquarela do Brasil nos inspira, extrair privilégios do Estado tem sido nosso verdadeiro flagelo. Não é coisa nova. Vem de longe, como mostra o artigo de William Summerhill sobre a promiscuidade entre interesses públicos e privados no Brasil do século 19 (Party and Faction in the Imperial Brazilian Parliament, em Crony Capitalism and Economic Growth in Latin America, de Stephen Haber).

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Também não é maldição apenas brasileira. A revista The Economist calcula um índice internacional que tenta medir o impacto do capitalismo de compadrio. A metodologia é bastante simples e, portanto, sujeita a falhas. Mede-se a relação entre a fortuna pessoal de oligarcas que atuam em setores caracterizados por uma simbiose excessiva com o Estado (cassinos, commodities, petróleo, entre outros) e o tamanho do Produto Interno Bruto (PIB).

Por esse critério, a Rússia garante o primeiro lugar no ranking. Lá, os ativos pessoais de empresários ligados a setores que mantêm relações perigosas com o governo excede 15% do PIB. Em segundo lugar no ranking da patifaria vem a Malásia, onde praticamente todos os bilionários listados pela revista Forbes devem sua fortuna a relações com o governo. A posição do Brasil surpreende. Não estamos mal na foto. No ranking do ano passado, ficamos em 15.º lugar, entre Reino Unido (14.º) e Estados Unidos (16.º). Na lista de 2014 estávamos em 13.º; o índice diz que estamos melhorando. “Há mentiras, malditas mentiras e estatísticas”, já dizia Mark Twain.

Seja como for, pensar que há lugares piores não pode nos dar conforto. A delação dos controladores da JBS é um episódio embaraçoso que atesta uma deplorável intimidade entre interesses públicos e privados – um jornalista fez a imagem de que Michel Temer recebeu Joesley Batista no Palácio do Jaburu vestindo pegnoir, tamanha a falta de cerimônia. Mas sejamos otimistas, em meio a esta hecatombe. Claro que nada está tão ruim que não possa piorar ainda mais, mas temos hoje uma oportunidade de refletir e tomar medidas práticas para fazer com que regras de mercado baseadas na impessoalidade e no primado da lei avancem e tomem espaço do capitalismo de compadrio.

Precisamos de mais mercado, mais competição e menos licenciosidade. Para isto, no entanto, é preciso assegurar que delação não pode significar impunidade. Da maneira como foram combinadas as coisas com a JBS, o crime compensa e recompensa. Mas aqui vai o grão de otimismo: a própria estultice da empresa, que, ao que tudo sugere, operou no mercado financeiro com informações privilegiadas, tem tudo para ser a chave para reavaliar a premiação excessiva.

Só a certeza da impunidade e o completo desprezo pelas leis podem explicar a ideia de jerico de comprar dólares e vender ações da própria empresa de forma irregular. Como essas operações são registradas em todas as suas minúcias, isso é tão inteligente quanto um ladrão apontar uma arma para o caixa de um banco e exigir que todo o dinheiro seja transferido para sua conta. A Comissão de Valores Mobiliários tem diante de si a oportunidade de fazer parte da história e mudar o Brasil.