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Colibris e urubus tributários

Propostas conceitualmente corretas, mas politicamente ingênuas; apenas ingênuas; e outras nem isso

Por Clovis Panzarini
Atualização:

Após o vendaval da reforma da Previdência, começa a soprar a brisa da reforma tributária, debatida há décadas sem progresso. A degradação do sistema tributário, que deteriora a produtividade da economia, trava o investimento, o emprego e a renda, impõe urgência na busca de um modelo mais simples, neutro e transparente, qualidades fundamentais ausentes em nosso caótico arcabouço de impostos. Várias propostas estão à mesa, algumas conceitualmente corretas, mas politicamente ingênuas; outras só ingênuas e algumas outras, nem isso. Esta análise se cingirá aos tributos sobre consumo.

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Entre as do grupo “nem isso” está a do Instituto Brasil 200, que defende a adoção do Imposto sobre Transações Financeiras, uma sideral CPMF – fetiche de jejunos em matéria tributária – que supostamente esconde o peso do imposto no escurinho das transações financeiras, invisíveis para a maioria dos contribuintes. Dane-se a transparência, mania de intelectuais... É “insonegável”, simples e indolor, dizem os defensores da maluquice. É fácil imaginar a magnitude da desintermediação financeira se em cada operação o correntista perder 5% de seu valor. O saldo bancário passaria a ser moeda maldita. E não há desenho mais favorável à evasão fiscal: dinheiro vivo, dólar e criptomoedas circulariam imunes; encontro de contas entre devedores e credores da cadeia produtiva daria bypass no imposto “insonegável”. Assim, trocar ações do Itaú pelas da Brink’s seria altamente recomendável. Problema maior ainda é a falta de neutralidade do imposto, que induz arranjos produtivos ineficientes, integração vertical e turbulência financeira. Cadeias produtivas curtas seriam subtaxadas; as longas, sobretaxadas: a carga tributária de cada bem ou serviço seria insondável. E empréstimos bancários de curtíssimo prazo, hoje sujeitos a taxa de juros quase simbólica, passariam a ter ônus de cartão de crédito. Enfim, há quem goste.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 110/19, que tramita no Senado, extingue 8 tributos da União e cria um imposto monofásico federal incidente sobre petróleo, combustíveis, energia elétrica, comunicações, cigarros e bebidas. Elimina, ainda, o Imposto Sobre Serviços (ISS) municipal, cuja base é somada à do ICMS estadual. A matriz insumo-produto de 2015 calculada pelo IBGE, projetada para 2018 a partir da evolução nominal do PIB no período, permite calcular as bases dos novos impostos e avaliar a cumulatividade por eles gerada. As operações intermediárias com energia elétrica, comunicações, combustíveis e veículos de carga (bens de capital) somam cerca de R$ 1 trilhão, que tributado, digamos, a 20% injetaria cumulatividade de R$ 200 bilhões na economia, dez vezes maior que a do ISS nas prestações de serviços intermediários! De outro lado, o alardeado ganho de base dos Estados com o fim do ISS é enganoso. Serviços intermediários – base mais nobre do ISS – não gerariam um centavo de receita do não cumulativo ICMS, cuja base ganharia só os serviços consumidos pelas famílias, em grande parte prestados por empresas do Simples, não sujeitas à mudança. O ganho bruto de arrecadação dos Estados nem cobriria a perda dos 35% do ICMS que seriam transferidos à União, além da perda de arrecadação do ISS extinto. Do ponto de vista administrativo, a proposta traz equívocos mortais, cuja análise não cabe neste espaço.

A PEC n.º 45/19, da Câmara dos Deputados, obedece aos pressupostos que devem orientar um bom sistema tributário: simplicidade, neutralidade, eficiência, transparência. Extingue todos os tributos sobre consumo das três esferas de governo, substituindo-os por um Imposto sobre Valor Agregado partilhado entre União, Estados e municípios. Conceitualmente, a proposta é boa; politicamente, está longe do consenso. O setor de serviços, responsável por 75% do PIB, não a aceita. Governadores fingem que gostam, mas propõem mudanças que transformam o colibri em urubu. Há muitos obstáculos a superar.

*ECONOMISTA, SÓCIO DA CP CONSULTORES ASSOCIADOS, FOI COORDENADOR DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA PAULISTA

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