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Como viver sem a CPMF

Por Raul Velloso
Atualização:

Aprovada a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e passada a trégua das festas de fim de ano, as atenções se voltarão para o ajuste das contas da União à extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).Tributo esse que, como se tem noticiado, deve fechar o ano com arrecadação de R$ 36 bilhões, ou 1,4% do produto interno bruto (PIB). O grande drama do ajuste das contas à perda da CPMF é que: Seu peso no total da receita é significativo, devendo fechar em 7% da receita total líquida de transferências da União este ano (R$ 36 bilhões ante R$ 520 bilhões), coincidindo, aproximadamente, com o orçamento da saúde; a carga tributária brasileira é muito alta em termos internacionais, sinalizando dificuldade para introduzir novos impostos em seu lugar (mesmo porque a extinção da CPMF foi, em parte, uma demonstração do repúdio da sociedade à elevada carga de tributos que vem pagando); o gasto não-financeiro da União tem crescido muito nos últimos anos e se tornou extremamente rígido, refletindo crescentes demandas de segmentos da sociedade sobre o orçamento público; o controle da dívida pública exige, ainda, significativos superávits primários (excedentes de caixa antes de pagar juros). O atual governo se encontra, assim, diante de uma complexa encruzilhada, ao enfrentar situações fortemente conflitantes, na administração da perda de R$ 36 bilhões do orçamento público. Por um lado, existe todo o processo de ampliação dos gastos correntes, que vem desde a edição da Constituição de 1988, para atender às crescentes demandas relacionadas com as carências sociais do País e com as pressões de segmentos que se beneficiam de fatias expressivas do orçamento, como os funcionários públicos. Para esses interesses todos, o crescimento da carga tributária seguramente não é o maior problema. Por outro lado, existe a enorme resistência de vários segmentos da sociedade ao pagamento tão elevado de impostos que se faz no País. Finalmente, há a necessidade de destinar recursos expressivos ao pagamento de parcela do serviço da dívida, sob pena de pôr em risco o controle da inflação. O gasto não-financeiro total da União pode crescer à absurda taxa de 44% acima da inflação no encerramento deste ano, comparando minha última previsão para 2007 com os valores observados em 2001-2002, e bem acima, ainda, do crescimento acumulado pelo PIB real no mesmo período (21%). Esse crescimento foi puxado tanto pelo gasto obrigatório como pelo gasto discricionário. (Gasto obrigatório é aquele cujo crescimento é determinado por algum dispositivo legal, inclusive a Constituição federal. Os principais componentes são: previdência, pessoal, saúde e assistência social. Os demais são discricionários, sendo que, em 2006, cerca de um terço destes se referiu a investimentos, boa parte dos quais - 29% - correspondia a gastos em transportes). Entre 2001-2002 e 2004, o gasto obrigatório cresceu 12%, enquanto o gasto discricionário caía 18%. Nesse período houve algum esforço de contenção de despesas, em face do difícil quadro econômico enfrentado pelo atual governo nos seus primeiros momentos. Desde então, o governo vem tentando recuperar os gastos discricionários, especialmente após o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), ao tempo em que mantém vivo o forte crescimento dos gastos obrigatórios. Distinguem-se, então, duas fases na evolução recente da estrutura dos gastos não-financeiros. Até 1994, o processo de forte crescimento dos gastos correntes e dos gastos obrigatórios produziu uma subida do peso desses itens, respectivamente, para 96,9 e 90,6% do gasto total. Algo até há pouco inimaginável, em matéria de rigidez. De lá para cá, diante da tentativa de recuperação dos gastos discricionários, o peso dos gastos correntes e dos obrigatórios caiu para 93,8% e 85,7% do total, recuperação essa que tenderá, contudo, a se esvair a partir do ano que vem, em face da extinção da CPMF. Registre-se, em seguida, que apenas dois itens - Previdência Social e pessoal, os principais componentes dos gastos obrigatórios - se situaram recentemente bem próximos de 70% do total. Outro absurdo. Para o gestor financeiro público, o grande empecilho ao ajuste dos gastos para compensar a perda da CPMF é, então, o peso pouco expressivo dos gastos correntes discricionários - somente 6 %a 8% do total, e dos investimentos (entre 3% e 7% do total nos últimos anos), dado que, em tese, esses seriam os itens mais suscetíveis a cortes. Admitindo, diante da expectativa de alguma queda no custo implícito da dívida pública global, pós-melhoria das contas externas, que o superávit primário possa cair a partir de agora (embora apenas gradualmente), então, parte da perda da CPMF pode ser absorvida por uma menor destinação de recursos ao pagamento de parcela do serviço da dívida. Mas não tão menor: diante da recente aceleração da taxa de inflação, em face do crescimento excessivo da demanda agregada, já se falava, antes mesmo da decisão sobre o fim da CPMF, em manutenção ou até aumento da taxa Selic. Nesses termos, o governo dificilmente resistirá à tentação de aumentar alíquotas de impostos que possa alterar sem aprovação do Congresso (como no caso do IOF, cuja base de incidência é menor, mas coincide em parte com a da CPMF). Apurado esse ganho (e a despeito do desgaste político implícito, pois a oposição só teria aprovado a DRU sob o compromisso de nenhum outro aumento de impostos), decidiria a distribuição do restante do ajuste entre os gastos discricionários (basicamente, os investimentos) e a geração de superávit primário (pagamento de parcela do serviço da dívida). A margem de manobra para estabelecer essas hipóteses de solução é, contudo, muito limitada. Primeiro, porque não será uma tarefa simples convencer a sociedade de novos aumentos de tributos. Depois, porque um corte agudo nos investimentos abalaria fortemente o PAC, eliminando as chances de o governo retomar os tão importantes investimentos em infra-estrutura com seus próprios recursos. Por último, porque qualquer redução mal conduzida nos superávits fiscais pode gerar clima de intranqüilidade sobre a real capacidade de o governo controlar sua dívida. Moral da história: não dá mais para adiar o ajuste dos gastos obrigatórios. *Raul Velloso é consultor econômico Ribamar Oliveira está em férias.

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