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Covid-19 e empréstimo compulsório

É bom lembrar que, mesmo em casos extraordinários, a Constituição é a fonte e o limite do poder, inclusive de tributar

Por Humberto Ávila
Atualização:

Tramita no Congresso um Projeto de Lei Complementar (PLP 34/2020) que visa a instituir um empréstimo compulsório para atender às despesas causadas pelo coronavírus. É natural, pois, que se pergunte se o PLP é constitucional. A resposta é não, pelas seguintes razões.

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Primeiro, porque permite que a alíquota varie de zero a 10%, conforme definido pelo governo. Tal previsão viola a exigência de legalidade segundo a qual os elementos essenciais da obrigação, como a alíquota, devem estar previstos na própria lei, jamais podendo ser fixados pelo Executivo, salvo nos casos previstos pela Constituição.

Segundo, porque o empréstimo incide sobre o lucro líquido apurado nos 12 meses anteriores à publicação da lei. Pretende-se tributar hoje o que foi obtido ontem. Essa previsão infringe a proibição de retroatividade, conforme a qual é vedado aos entes federados cobrar tributos relativamente a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído, como é o caso.

Terceiro, porque o projeto, ao onerar hoje o que foi obtido ontem, obriga os contribuintes a pagar um tributo conforme a sua capacidade econômica passada e abstrata, mesmo não tendo dinheiro para tanto. Tal proceder desrespeita o princípio da capacidade contributiva, do qual decorre o dever de que os tributos só atinjam manifestações atuais e concretas de capacidade econômica.

Quarto, porque o projeto intenta tributar quem tem patrimônio igual ou superior a R$ 1 bilhão, mas não tem lucro no momento, deixando de tributar quem tem lucro no momento, ainda que tenha aquele patrimônio. Esse modo de agir infringe o princípio da igualdade, que exige tanto uma relação de congruência entre a finalidade da lei e o critério de diferenciação que visa a promovê-la quanto uma relação de consistência entre aquilo que o legislador diz fazer e aquilo que ele efetivamente faz. O dever de congruência é violado porque o legislador elege quem vai pagar com base em um elemento (patrimônio), mas define sobre qual grandeza se vai pagar com referência a outro (lucro), promovendo desigualdade, na medida em que tributa quem tem patrimônio, mas não tem lucro, deixando de tributar quem tem este, mas não aquele. O dever de consistência é violado porque o legislador não age de maneira consequente, já que tributa quem não tem lucro e deixa de tributar quem tem, violando os critérios aplicáveis à tributação do lucro: generalidade, universalidade e disponibilidade líquida.

Quinto, porque o projeto, ao prever a instituição de uma alíquota que pode chegar a até 10%, permite que a tributação total da pessoa jurídica, quando a nova alíquota for somada às existentes, possa se aproximar dos 50%. Ainda obriga o contribuinte que não tem lucro no momento a se desfazer do seu patrimônio para poder pagar. Ao fazê-lo, viola a vedação de confisco, de acordo com a qual nenhuma lei tributária pode restringir o núcleo dos direitos de propriedade e liberdade.

Sexto, porque o projeto prevê que os valores “efetivamente gastos na finalidade a que se destinam” serão restituídos em até quatro anos a contar do “fim da situação de calamidade pública”, “de acordo com a disponibilidade orçamentária vigente”. A redação permite a interpretação de que somente os valores “efetivamente gastos na finalidade a que se destinam” precisariam ser restituídos, não aqueles desviados. Também tolera a leitura de que, se não houver “disponibilidade orçamentária vigente”, os valores nem sequer precisariam ser devolvidos. Essas previsões violam o dever de restituição dos valores arrecadados num prazo fixo.

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Assim como este, outros projetos similares surgirão com a finalidade de financiar os gastos com a atual situação de calamidade. Por isso é bom lembrar que, mesmo em casos extraordinários, a Constituição é a fonte e o limite do poder, inclusive de tributar.

*PROFESSOR TITULAR DE DIREITO TRIBUTÁRIO DA USP