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Crise, a grande eleitora de 2010

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

As últimas semanas têm sido marcadas por manifestações e iniciativas particularmente atabalhoadas por parte do governo. E isso ocorre exatamente quando a crise econômica, que era "deles", no julgamento do presidente da República, não só se mostra crescentemente nossa como promete ser fator crucial na eleição de 2010. Tanto a posse do novo presidente norte-americano quanto a crise no Oriente Médio ensejaram reações do governo que justificam preocupações em relação à deterioração da qualidade de um processo decisório que já era claudicante. Vale a pena lembrar a mal disfarçada simpatia do governo brasileiro pela candidatura republicana nos Estados Unidos. Na superfície, era baseada em argumentos discutíveis sobre o maior compromisso dos democratas com o protecionismo. De fato, era talvez realisticamente baseada na avaliação de que seria mais fácil lidar com um limitado presidente republicano: John McCain e Lula tinham tudo para continuar a vazia "sintonia" Lula-Bush. Comentários talvez semijocosos do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, no final de 2008, atribuindo a Barack Obama o fracasso da Rodada Doha, não contribuíram para desanuviar o clima. O pior estava por vir. Ganhou espaço no governo a ideia de que, dado que Obama havia sido aluno do ministro Mangabeira Unger na Harvard Law School, essa ligação seria uma boa forma de acesso ao novo presidente dos EUA. De fato, a eficácia da ligação é discutível, a menos que se invoque com fervor o Barão de Munchausen. O ministro tem-se destacado por suas trapalhadas, curtos-circuitos, retratações e cambalhotas políticas. É também o responsável por órgãos de formulação estratégica do governo - como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - que estão sendo vitimados por virulentos preconceitos ideológicos, somados à capacitação inadequada de seus dirigentes. Talvez valha a pena traduzir para o inglês algumas das perguntas incluídas nas recentes provas de admissão ao Ipea para divulgação em Harvard Square, como indicação do que o ministro considera princípios científicos aceitáveis. O episódio é mais um exemplo de diplomacia marcada pelo excesso de iniciativas descoordenadas em detrimento de ação diplomática ordenada com utilização dos canais usuais. Na crise do Oriente Médio, o governo mostrou, combinando destempero com protagonismo imaturo, que, mesmo quando adota posição em princípio sensata e equilibrada sobre tema de importância, acaba por sofrer desgaste. Quem saiu ganhando com as declarações irresponsáveis do principal assessor do presidente sobre o "terrorismo de Estado", que caracterizaria as políticas de Israel? Certamente não foram os que trabalham para que seja alcançada paz equilibrada no Oriente Médio, que preserve os direitos de todas as partes em conflito. A declaração acabou apenas servindo para aumentar o nível de irracionalidade de posições antagônicas. Sai o destempero, entra o protagonismo. O que é mesmo que o ministro de Relações Exteriores foi fazer em seu recente périplo no Oriente Médio? Mostrar, mais uma vez, que o Brasil é candidato sério ao Conselho de Segurança da ONU? Deveria ter feito escala em Paris e tratado de convencer o aliado estratégico Nicolas Sarkozy a mencionar o Brasil, e não apenas "um país da América Latina", como forte candidato a uma das possíveis novas vagas. Para coroar as trapalhadas, ocorreu o episódio Cesare Battisti, no qual o ministro da Justiça, Tarso Genro, a despeito de manifestação contrária do Comitê Nacional de Refugiados, concedeu refúgio humanitário ao impetrante. Embora muitos considerem perigoso o caminho escolhido pelo ministro para amparar a sua decisão, ao questionar os procedimentos judiciais italianos e enfatizar pretensas limitações a efetivo "amplo direito de defesa", não foi a decisão em si que sublinhou o atordoamento do governo. Foram as trapalhadas colaterais. O presidente Lula começou por invocar a soberania brasileira quanto à decisão. De fato, a soberania do Brasil não foi questionada. O presidente parece não avaliar que apenas chefe de Estado que tem dúvidas a respeito da soberania de seu país é que a invoca com tanta frequência. Seguiu-se uma exagerada irritação presidencial com a publicidade prematura dada à carta do presidente italiano. Quanto à substância, nada. Tarso Genro chegou a comparar os casos Battisti e Cacciola, deixando de levar em conta a dupla nacionalidade do ex-banqueiro. Talvez haja ainda um fio de esperança e o Supremo Tribunal Federal possa resolver a trapalhada, viabilizando a extradição. E evitando a façanha de azedar as relações com a Itália. A popularidade do presidente é um elemento crucial para definir a sua sucessão, especialmente se o candidato for um poste. Popularidade depende de crescimento do produto e do emprego. A economia em 2009 está rumando para crescer menos de 2%, talvez nem tanto. Há grande incerteza quanto à recuperação da economia mundial - o desempenho econômico brasileiro em 2010 pode ser também medíocre. A disputa das eleições presidenciais ocorrerá em ambiente econômico contrastante com o clima favorável, assegurado por inflação baixa, seguida de crescimento acelerado, nos primeiros seis anos de governo Lula. Haverá tentação, no biênio final, de ajustar a política econômica a objetivos eleitorais. A qualidade declinante das decisões do governo nas esferas diplomática e jurídica pode acabar por contaminar a esfera econômica de forma ainda mais abrangente. Aumenta rapidamente a probabilidade de que cheguemos à incrível conclusão de que éramos felizes e não sabíamos. *Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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