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'Crise pode levar Estado a ter papel maior na economia', diz Martin Rama

Para economista-chefe do Banco Mundial, países devem se preparar para dar suporte a empresas e bancos a fim de garantir retomada de atividade

Por Idiana Tomazelli
Atualização:

BRASÍLIA - Com a tarefa de medir os impactos econômicos e sociais de uma crise sem precedentes, o economista-chefe do Banco Mundial para América Latina e Caribe, Martin Rama, diz que a maior preocupação não deve ser o número recorde de queda do PIB brasileiro (a instituição projeta uma retração de 5% em 2020, que seria a maior em 120 anos), mas sim as consequências para empresas e para a população. “É como se pensa: esperemos o melhor, projetemos o pior”, diz em entrevista ao Estadão/Broadcast.

Segundo ele, não se trata de confrontar “custos humanos” com a pandemia do novo coronavírus e “custos materiais” com a perda de empregos. Ele adverte, porém, que os países devem se preparar para uma série de riscos econômicos decorrentes da crise, como a necessidade de dar suporte direto a empresas e bancos. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Rama afirma que projeção de queda de 5% do PIB se deve a incertezas da atual crise. Foto: Eric Baradat/AFP

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O Banco Mundial projeta uma queda forte da atividade na América Latina em 2020, mas uma recuperação já em 2021. Há risco de frustração?

A base da projeção da recuperação é a seguinte: as três maiores economias do mundo têm os meios para enfrentar a crise. Estados Unidos e Europa colocaram em marcha programas muito amplos de estímulo fiscal, monetário, com garantias. Isso nos faz pensar que é uma parada temporária, que podemos recuperar. China também tem capacidade de organizar uma recuperação e já estamos começando a ver isso aos poucos. Essas três economias são muito importantes para América Latina. A razão para prevermos uma recuperação para o ano seguinte (2021) é que vamos aprendendo sobre a epidemia e seu controle, o que funciona bem. Provavelmente ao longo dos meses teremos muito mais capacidade de ter em média (quarentenas) mais seletivas em todos os países, ou ao menos nos países com maior capacidade. Todas são razões pelas quais nosso prognóstico de 2021 recupera boa parte da queda.

Em 2020, as quedas são expressivas. Só no Brasil, um tombo de 5%. A que se deve isso?

As razões para sermos tão pessimistas em 2020 são que agora estamos vendo a primeira onda do choque. A primeira onda é um choque de demanda, um choque financeiro, que vem de fora, e um choque de oferta porque muitas pessoas não podem sair para trabalhar. Este é recém o primeiro impacto. Se isso se prolonga e começamos a ter queda na demanda por gente que perde o emprego, começa a ter empresas sem condições de pagar suas dívidas e que geram problemas no setor financeiro. Neste caso, podemos ter um impacto mais forte do que vemos por agora. No relatório, usamos dados de emissões de dióxido de nitrogênio, que é o que sai dos canos de escape dos veículos, dos motores, das chaminés, e isso se pode observar dia a dia. Quando olhamos essas informações, algumas quedas são muito importantes, mas não são as mesmas em todos os lados. Na América Latina, foram muito fortes nos países do lado do Pacífico, mas não muito forte no Brasil.

Nos Estados Unidos, o número de vítimas e mortes é um alerta do impacto que a pandemia ainda pode ter nesse país?

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O impacto ocorre em duas frentes. Se (o governo) decide atacar a epidemia fortemente, há menos mortes, mas ao mesmo tempo há menos atividade econômica. Os países têm lidado com essas opções de maneiras diferentes. Em países grandes como Estados Unidos e Brasil, tem mais sentido diferenciar por Estados. A forma de lidar com um Estado com alta densidade de população não é a mesma do que em Estados onde os contatos naturais entre as pessoas são muito menores mesmo em tempos normais. Há muita incerteza sobre como lidar com os dois custos, e a receita pode mudar muito de acordo com a característica do lugar, qual é a capacidade do sistema de saúde nesse Estado. A análise do relatório é, obviamente, de que as quarentenas mais restritivas, mais gerais, têm um impacto sobre a atividade econômica muito maior do que as (quarentenas) focalizadas em determinado grupo da população. Mas ao mesmo tempo, os isolamentos gerais são mais eficazes para reduzir a quantidade de casos. E aí tem um ponto que gostaria de ressaltar. Os países que adotam medidas focalizadas mais cedo conseguem um resultado tão bom quanto países que adotam medidas dramáticas mais tarde. Esse é o resultado que temos.

Em alguns países, a discussão entre o combate à pandemia o combate à crise econômica é colocado como um dilema. Isso é um dilema de fato?

Teríamos tendência a ver como um dilema. Não é um tema de confrontar custos humanos e custos materiais. Uma crise (econômica) também tem custos humanos, quando as pessoas ficam sem emprego, sem renda, quando as crianças não podem continuar estudando ou fazer outras coisas. Quando o mercado de trabalho está desaquecido, é um custo a mais. Portanto, é uma decisão entre os custos. Os economistas pouco a pouco vão vendo os instrumentos, como lidar com esses custos ao longo do tempo, começam a fazer análises sólidas. Mas um dos problemas que temos é que muitas dessas análises são feitas sobre simulações. Não é o mesmo do que quando ocorre na prática. A vantagem da América Latina é que chegamos a essa crise depois que a Europa, bem depois do que países da Ásia, e podemos aprender com eles o que funciona ou não funciona.

Países como o Brasil desenharam programas de apoio a trabalhadores e cidadãos com duração de três meses. É suficiente ou será necessário ampliar?

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Me parece prudente começar com um tempo de duração curto, exatamente pela incerteza. Se lança agora um apoio muito duradouro e depois não se prova necessário, estamos todos em nossos países com espaço fiscal reduzido, seriam recursos que poderiam ser utilizados de outro modo. É uma política prudente ir estendendo tanto as políticas na frente sanitária quanto as políticas de apoio às famílias à medida que vamos vendo como evolui a crise.

O contingente de informais é maior na América Latina. Quais são as dificuldades para encontrá-los e qual é a melhor maneira de localizá-los?

Temos duas grandes diferenças. Não temos a massa de recursos que a Europa tem, não temos um Banco Central Europeu. A segunda é o nível de informalidade. Isso significa que muitos instrumentos que outros países estão usando, como o seguro desemprego, não chega às pessoas mais necessitadas. Os mais impactados são os que tinham pequenos trabalhos e agora precisam ficar em suas casas, ou que veem a demanda cair e não estão nos registros formais de nenhum tipo. Há duas avenidas a serem exploradas. A primeira são programas existentes, que conseguem chegar às famílias, com uma certa ampliação para que chegue a uma população que não estava sendo atendida mas que têm elementos parecidos (de necessidade de ajuda). A outra é o uso de elementos de tecnologia, como plataformas digitais, por telefonia móvel. Seria uma forma de obter identidade clara do beneficiário, de ter garantias de que não haverá abuso do sistema.

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No Brasil há uma cobertura grande de telefonia celular, mas ainda assim há uma parcela da população sem acesso à tecnologia. Como assegurar que não ficarão sem ajuda?

As escolas conhecem as crianças, as famílias, podem identificar a família que realmente necessita. É possível fazer coisas utilizando o mesmo aparato estatal que distribui Bolsa Família ou outro mecanismo de distribuição de recursos. Não vai ser perfeito. Por uma razão de análise, esse não é o momento de estar pensando nos critérios de exclusão, se a pessoa é certa, se não é. É preciso tratar de fazer chegar (aos beneficiários).

Já se fala em como agir no pós-crise. Que medidas podem ser tomadas? O governo precisará seguir ajudando a população?

Há muitas linhas de medidas. Mas uma questão que enfatizamos muito no relatório é a necessidade de fazer mais que simplesmente ajudar os excluídos. Há setores que são estratégicos, importantes para o país, que estão em dificuldades. Como por exemplo o setor aeronáutico, as companhias de aviação. O mesmo vale para o sistema financeiro. Se começa a haver muitas falências... Hoje na América Latina os bancos estão em uma boa posição, mas se muita gente deixa de pagar suas dívidas, isso pode não se manter. Em muitas crises vimos necessidade de se capitalizar banco. Tudo isso pode levar o Estado a ter um papel maior na economia. Se o Estado precisa apoiar o capital em uma empresa estratégica e capitaliza bancos, toma dívidas de outros para aliviar a situação, como se toma essas decisões? Como se toma de maneira transparente? Uma linha para seguir uma boa recuperação é começar a preparar isso antes. Se é preciso adotar medidas extraordinárias, como adotá-las, como se chega a um consenso sobre a necessidade e o tipo de apoio? Como se manejam os ativos do Tesouro de maneira transparente, que extraia a competência do setor privado e que o mais rápido possível permita devolvê-la ao setor privado.

É preciso um preparo desde já?

Sim, por exemplo, a transparência na aquisição e manejo de ativos, alguém pode dizer que se cria um conselho gestor para ajudar nessa decisão. Ou se cria um fundo soberano, ou uma gerência de gestão de ativos, utilizando o melhor da experiência profissional no setor privado para lidar com esses ativos. Pode-se prever o mecanismo. Se não precisa usá-lo, perfeito. Mas se pode prever o mecanismo. Se organizamos bem as decisões agora de curto prazo, e essa é uma grande decisão que se tem que tomar, a economia vai voltar muito melhor.

O risco de uma crise financeira é um exagero, ou os países devem se preparar?

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Tenderia a ser um exagero. Há diferenças entre países, mas na verdade a América Latina está mais fraca fiscalmente e está mais sólida em seu setor financeira, e isso é uma notícia boa. Mas é como se pensa: esperemos o melhor, projetemos o pior. É simplesmente uma questão de prudência pensar os tipos de protocolos, os tipos de decisões que seriam necessárias se isso ocorre. O que acontece se um setor importante da economia necessita de ajuda porque não pode haver demissões, e são empregos bem pagos, empregos de engenheiros, profissionais, e isso atrasar? Como se avaliam essas decisões, se tem que apoiar ou não tem que apoiar? Esse é o melhor momento para planejar.

A queda de 5% no PIB do Brasil seria a pior em 120 anos. Isso dá a dimensão correta do tamanho da crise?

São projeções. Mas estamos lidando com uma crise que não se parece em nada com as anteriores. Não devemos dar demasiada importância aos números em si, mas à preocupação caso algo assim ocorra, como lidar com isso. Não consigo me lembrar de nada similar.

Alguns países da América Latina têm déficit mais alto e dívida elevada, como o Brasil. É um desafio?

Sim, será um desafio para todos, mas há outras diferenças entre os países. Há países que enfrentavam uma crise prévia, como Argentina e Equador, há países que passavam já por uma recuperação, como estava ocorrendo no Brasil. O Brasil tem uma vantagem é que ter um mercado interno importante, pode ajudar muito. Há um bom entendimento no mercado internacional de que nos próximos anos muitos países terão que manter um nível de dívida mais elevado. O tipo de disciplina em tempos normais não pode ser exigido (agora). É importante para a estabilidade econômica, mas todo mundo entende que se tem que criar espaço.

Mas como fazer o ajuste depois?

Há uma perda real. Se uma economia paralisa durante certo tempo, é uma perda real. Não se recupera. A questão é como se distribui isso no tempo. Tomar mais dívida é uma forma de absorver a perda hoje, mas há uma socialização de perdas, o governo vai gastar mais agora, vai se endividar, fazer o quê. Esse é um cálculo que todos os países estão fazendo. A hora é de manter a confiança financeira, que o sistema financeiro esteja sólido.

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