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Culpar a China não resolve

Enquanto o movimento contra a intervenção estatal ganha força nos Estados Unidos, outros países, como o Japão, decidem copiar a China e 'administrar' suas moedas

Por Anatole Kaletsky
Atualização:

É uma aposta segura que uma intervenção na moeda asiática não estava nas mentes dos votantes na plenária republicana de Delaware quando escolheram a preferida do movimento Tea Party, Christine O" Donnell, para concorrer ao Senado. Mas as oscilações do pêndulo na política americana são uma preocupação central para Wen Jiabao e Naoto Kan, os primeiros-ministros da China e do Japão, que se reuniram com o presidente Barack Obama em Nova York na quinta-feira para tratar, com prioridade, da perda de empregos americanos para a competição asiática.O interesse de países asiáticos pela política americana decorre não só da posição dos EUA como única superpotência global, mas também de uma crença crescente entre líderes asiáticos que a era de hegemonia americana se esgotará em breve, e que a polarização em sua política simboliza a incapacidade de a América se adaptar à natureza cambiante do capitalismo global após a crise financeira.O que tem a ver essa declaração radical com o preço do iene? Muito. Em 15 de setembro, o iene caiu fortemente ante o dólar, melhorando a competitividade dos exportadores japoneses. Após uma breve recuperação na semana passada, espera-se o prosseguimento da tendência baixista. O governo Kan decidiu seguir o caminho da China e de outros países asiáticos na "administração" (alguns críticos diriam manipulação) de sua moeda; ele gastou recordes US$ 23 bilhões em um único dia em bolsas estrangeiras - a maior intervenção do gênero já feita - em vez de deixar o valor do iene ao sabor das forças do mercado.Para entender como essa decisão afetará os EUA, precisamos começar com a política paroquial da Ásia, que continua sendo uma terra desconhecida para a maioria dos americanos. Na política asiática, o que se vê é, com frequência, o oposto do que ocorre. Em 14 de setembro, Kan, que é considerado um defensor do livre mercado, se sustentou no cargo numa eleição intrapartidária após um duro desafio de seu rival Ichiro Ozawa, que havia pedido alto e bom som uma política ao estilo chinês de intervenção na moeda para manter baixo o valor do iene. Com a vitória de Kan, os investidores imaginaram que a intervenção monetária estava fora da agenda e correram para o iene, provocando uma alta para um pico de 15 anos do iene ante o dólar.Ocorre, porém, que Kan, ao vencer a eleição, pode ter tacitamente cedido o controle da política econômica a Ozawa, conhecido como o "xogum sombra" por suas proezas em acordos de bastidores. Seguiu-se daí a liquidação do iene.A decisão de romper com a ideologia de livre mercado e gastar dinheiro do governo para controlar o valor do iene ante o dólar foi movida, sobretudo, pelo relacionamento do Japão com a China, e não com os EUA. Companhias japoneses, entre as quais Sony e Toyota, que haviam pedido uma ação do governo para desvalorizar o iene, não estavam preocupadas com sua competitividade ante rivais americanas. A motivação foi o medo de serem vencidas por exportadores da China, Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan - países que administram agressivamente suas taxas de câmbio.Com a política econômica chinesa servindo de modelo para outros países asiáticos, o Japão ficou diante de uma escolha simples: apoiar críticas americanas que a China está mantendo o valor de sua moeda artificialmente baixo, ou imitar a China. É um sinal dos tempos que o Japão tenha optado por seguir a China sob pena de irritar os EUA.A ação do Japão sugere que o predomínio do pensamento de livre mercado na economia internacional terminou. Washington deve compreender isso, ou se verá superado em suas tratativas com o resto do mundo. Em vez de ficarem obcecados com a manipulação monetária da China como se essa fosse uma exceção em um mundo de forças irrestritas do mercado, os EUA precisam se adaptar a um ambiente em que desequilíbrios comerciais e cambiais são administrados conscientemente e se tornaram um tema legítimo para debates em fóruns internacionais como o G-20.Fundamentalistas de mercado. Os fundamentalistas do mercado que sentem que a interferência de governos é um tabu devem ser lembrados de que, pelos padrões dogmáticos de hoje, Ronald Reagan presidiu duas das maiores intervenções monetárias da história: o acordo de Plaza, que desvalorizou o dólar em 1985, e o do Louvre de 1987, que encerrou a desvalorização.As regras do capitalismo mudaram irrevogavelmente desde o colapso do Lehman Brothers há dois anos - e se os EUA se recusarem a aceitar isso, a liderança global lhe escorrerá por entre os dedos.Nesse clima, o fundamentalismo de mercado do Tea Party, baseado numa aversão instintiva a governos e numa fé de que "o mercado está sempre certo", é motivo de riso em todo o mundo. No entanto, figuras mais moderadas de ambos os partidos sustentam em grande parte a mesma visão: uma medida para punir a China sobre sua moeda foi aprovada na Comissão de Modos e Meios da Câmara com apoio bipartidário.Fora dos EUA, porém, existe hoje uma forte convicção de que alguma nova versão de capitalismo global deve evoluir para substituir o chamado "consenso de Washington".Se as forças do mercado não podem fazer uma coisa tão simples como financiar hipotecas de casas, será o caso confiar nos mercados para restaurarem e manterem o pleno emprego, reduzirem os desequilíbrios globais ou impedirem a destruição do meio ambiente e nos prepararem para um futuro sem combustíveis fósseis? Essa é a pergunta que os formuladores políticos fora dos EUA, especialmente na Ásia, estão hoje fazendo. E a resposta é "sim e não".Sim, porque os mercados são o melhor mecanismo para alocar recursos escassos. Não, porque os investidores no mercado são com frequência míopes, não conseguem refletir objetivos sociais amplamente sustentados e às vezes cometem erros catastróficos. Há momentos em que governos precisam criar incentivos ao mercado para alcançar objetivos que são determinados pela política e não pelos próprios mercados, entre os quais estabilidade financeira, proteção ambiental, independência energética e alívio da pobreza.Isso não significa que os governos ficarão maiores. O novo modelo de capitalismo que evolui na Ásia e partes da Europa geralmente requer um governo menor, mas mais eficiente. Muitas atividades consideradas garantidas como prerrogativas de governo nos EUA foram há muito privatizadas em países estrangeiros.O que nos traz de volta a Delaware. O que ocorrerá se os EUA decidirem ignorar a reinvenção global do capitalismo e optarem por uma reprise nostálgica do fundamentalismo de mercado? Isso não impedirá o resto do mundo de mudar de curso.Antes tornará mais provável que o modelo econômico dominante não será um produto do capitalismo democrático, baseado em valores ocidentais e na liderança americana. Será um capitalismo liderado por Estados autoritários inspirado em valores asiáticos. Se os EUA optarem pela nostalgia e a ideologia e não pelo pragmatismo e o progresso, o novo modelo de capitalismo provavelmente será "made in China", como tudo o mais no mundo hoje em dia. / TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK É ECONOMISTA-CHEFE DE EMPRESA DE CONSULTORIA BASEADA EM HONG KONG

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