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Da retórica do ódio à recriação da história

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Por Rolf Kuntz
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já foi comparado a um animador de programa de auditório. Mas ele é versátil. Quando se trata de inventar um inimigo da pátria, ele adota o estilo raivoso, rascante e rosnento imortalizado por Adolf Hitler. Usou esse estilo nesta semana, de novo, para falar de quem torce (quem, mesmo?) a favor da crise. É um dos talentos petistas: fantasiar o presente. Outro talento partidário é recriar a história. Foi demonstrado mais uma vez, quando se decidiu culpar o PSDB e o DEM pelos problemas decorrentes da crise internacional. Coube ao PT a virtude de aproveitar a prosperidade capitalista para conduzir o Brasil ao crescimento. Cabe aos adversários o crime de haver criado condições para isso. Num país de muitos jovens, pouca leitura e pouca memória, a recriação do passado pelo bloco do "nunca antes" poderia colar. Mas nem todos são tão jovens e há documentos para a reconstituição dos fatos. Um desses é um texto de junho de 1984, assinado pelo secretário do PT, José Dirceu, contra a Aliança Democrática e o Colégio Eleitoral. Os petistas não participaram da campanha de Tancredo Neves. Não se envolveram na delicada construção da ponte para a democracia. Não deixaram a pureza ideológica, mas nunca recusaram desfrutar das vantagens do novo regime. Produzir uma Constituição foi o grande passo seguinte para a consolidação da democracia. Petistas participaram, mas alguns decidiram não assinar o documento. O presidente Lula, ex-constituinte, lembrou esse episódio em discurso no dia 5 de novembro. "Nós, do PT, votamos contra o texto. Depois houve uma discussão se iríamos assinar ou não." Ele defendeu a assinatura. Seu pudor, na ocasião, deve ter funcionado. Os arautos do Olimpo não deixaram, no entanto, de apoiar a limitação de juros incluída no artigo 192. Para isso, uniram-se a um empresário em má situação financeira e a fazendeiros interessados em baratear seus débitos bancários. Com o mais puro espírito revolucionário, aliaram-se ao grupo ruralista para impor uma derrota aos banqueiros. Se aquela estupidez tivesse prevalecido na prática, a política monetária teria sido entravada e o combate à inflação - invocado como grande feito do PT, nos últimos anos - teria sido impossibilitado. Nos anos 90, o PT se opôs ao Plano Real. Se dependesse do partido eleito pelos deuses como portador do destino histórico do Brasil, a inflação seria combatida, de novo, com os controles de preços e outras feitiçarias desmoralizadas pela experiência e rejeitadas pelos neurônios ainda ativos na vida pública. Na Presidência, Lula vangloriou-se de haver rejeitado as mágicas econômicas. Isso permitiu, até agora, a combinação de crescimento e estabilidade. O PT combateu o Plano Real, a renegociação da dívida dos Estados, a privatização ou reforma dos bancos estaduais e, portanto, as mudanças necessárias a um mínimo de ordem nas contas públicas e à revitalização da política monetária. Essa política seria inexeqüível, se o Banco Central continuasse forçado a sancionar a emissão de moeda pelos bancos estaduais, encarregados de financiar os desmandos praticados pelos mais irresponsáveis governadores. O PT se opôs também à Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa lei foi a mais importante reforma político-administrativa depois de 1988. De certo modo, foi mais inovadora do que a Constituição, porque mexeu em velhos costumes políticos. Se dependesse do PT, não teria sido aprovada. Gênios do PT, incluídos alguns de seus economistas mais conhecidos, apoiaram a realização de um plebiscito sobre a dívida pública. Em 2002, o crescimento do candidato Lula da Silva assustou os mercados financeiros. Nada mais natural, depois de toda a conversa irresponsável sobre renegociação da dívida (calote, em português corrente). O dólar subiu, o financiamento estrangeiro encolheu e os preços dispararam. Lula escreveu a Carta aos Brasileiros para prometer seriedade. A herança maldita havia sido preparada pelos petistas, empenhados, durante anos, em ameaçar os credores do Tesouro. Só um alienado menosprezaria o risco de um calote, especialmente depois da violência perpetrada por Fernando Collor de Mello. O balanço é simples. Lula acertou ao desprezar as teses petistas. Errou ao seguir as bobagens defendidas pelos companheiros, como a diplomacia terceiro-mundista. As ameaças de calote dos vizinhos populistas são um capítulo dessa política. Mas estes são fatos, só isso. Fatos são secundários na retórica e na historiografia petistas. *Rolf Kuntz é jornalista

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