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Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

De repente, não mais que de repente

Tempo precioso tem sido perdido com a dispersão de esforços e com a lentidão na operacionalização das medidas de socorro

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Por Ana Carla Abrão
Atualização:

Quando tirei férias desta coluna, há pouco mais de um mês atrás, ainda era carnaval. Meu último texto foi publicado na terça-feira gorda. Naqueles dias, o que ainda nos tirava o sono eram preocupações convencionais e já habituais. Ameaças (repetidas) às nossas instituições fiscais, a força e o oportunismo das pressões corporativistas – algumas vitoriosas –, a crise de Estados e municípios, que não cedia na ausência de reformas estruturais e as revisões para baixo do PIB de 2020, indicando uma frustração nas expectativas de retomada da economia.

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Além disso, discutíamos as reformas tributária e administrativa que, passado o carnaval, continuavam na concentração.

De repente tudo mudou. Em um intervalo de dias, o mundo virou de ponta cabeça e com ele o Brasil. Prioridades foram subitamente (e corretamente) alteradas quando já iniciávamos uma triste contabilidade de infectados e, infelizmente, de mortos. Se achávamos que sabíamos o que era uma crise grave, do dia para a noite fomos obrigados a atualizar nossos conceitos e a aprender em tempo recorde que há crises mais fortes, mais profundas e mais amplas do que as que já havíamos vivido no passado. 

Vivemos a queda do PIB por dois anos consecutivos e crescimento pífio desde então, desemprego em níveis recordes, déficits fiscais sucessivos e crescentes, entes subnacionais em colapso financeiro, relação dívida/PIB ameaçando a solvência e minando a confiança no País. Confiscos, congelamentos, desvalorização cambial. Nada disso se compara ao que está diante de nós agora.

A crise atual difere das demais a começar pelo seu caráter sanitário, impondo uma pressão sem precedentes nos sistemas de saúde público e privado. No Brasil, onde a vasta maioria da população depende do atendimento público, já sabidamente deficitário, os desafios são ainda maiores. A depender do ritmo de escalada da contaminação, o resultado pode ser trágico. Daí a importância das medidas de distanciamento social. Ganha-se tempo e distribui-se melhor a pressão sobre o sistema, e é disso que precisamos.

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Mas a única solução respaldada pelas evidências é também a que mostra a outra face sombria dessa crise: seus impactos econômicos. A contrapartida do tempo ganho na saúde é o tempo perdido – e também sem volta – na economia. Num primeiro estágio, os problemas se concentravam nos impactos do desabastecimento de insumos chineses ou nos setores exportadores, por queda na demanda externa. Mas o vírus se alastrou como fogo num rastilho de pólvora e com ele vieram as quarentenas, os lockdowns e a repentina interrupção da atividade econômica. 

Os impactos já são sentidos e precisam ser minimizados. E o receituário fica cada vez mais claro – inclusive pelas lições aprendidas com os países que estão à nossa frente nesse ciclo. Há que se investir no aumento da capacidade de atendimento dos contaminados; recompor a renda dos socialmente mais vulneráveis; proteger pequenas e médias empresas e seus respectivos empregos; garantir funcionalidade ao mercado de crédito evitando o seu colapso; e eliminar os riscos de desabastecimento. 

Cada um dos itens dessa agenda demanda um conjunto de novas políticas públicas e sua efetiva implementação para que cheguem na ponta, ou seja, no cidadão. Para isso dependemos não só do Executivo em seus três níveis federativos, mas também do Legislativo e do Judiciário, com todos agindo de forma coordenada.

Afinal, o sucesso da resposta à crise, assim como a retomada da atividade (e a velocidade dela) dependem dessa coordenação. Desde o fortalecimento da rede de proteção social, via transferências de recursos para as parcelas mais vulneráveis da população, até as ações de alívio tributário, de tarifas públicas e de crédito prescindem de uma visão ampla da crise para que se garanta consistência e efetividade das ações. Da mesma forma, a mobilização do setor privado, hoje tão intensa e louvável, precisa ser consistente com as necessidades prioritárias do setor público, sob risco de desperdiçarmos esforços e recursos hoje tão escassos. Mas toda essa coordenação ainda nos falta.

Embora tudo tenha mudado de repente, não mais que de repente, já se vão mais de 30 dias. Tempo precioso tem sido perdido com a dispersão de esforços, com a lentidão na operacionalização das medidas de socorro, com a falta de apoio a governadores que estão na linha de frente e com as bravatas do presidente da República. Tempo que se medirá, infelizmente, em número de vidas perdidas.

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*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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