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Diretor do Centro de Cidadania Fiscal, Bernard Appy escreve quinzenalmente

Decisão do STF pode ter efeito sobre a guerra fiscal

Falta ao Brasil um bom sistema tributário, que possibilite a cobrança do ICMS no Estado de destino

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Por Bernard Appy
Atualização:

No último dia 17 encerrou-se julgamento virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar 87/96 que preveem a incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular localizados em Estados federados distintos. A decisão do plenário do STF, tomada por unanimidade, foi a de considerar tais dispositivos inconstitucionais, ou seja, vedar a incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular, mesmo quando localizados em Estados distintos. A principal justificativa para a decisão é que o fato gerador do ICMS seria a circulação jurídica das mercadorias – ou seja, a transferência de titularidade – e não sua mera circulação física ou econômica.

Embora eu não tenha competência para avaliar os argumentos jurídicos que fundamentaram a decisão, tenho muita preocupação com seus efeitos sobre a distribuição da receita entre os Estados e, sobretudo, sobre o estímulo à guerra fiscal. Essa preocupação resulta essencialmente do fato de que, nas operações interestaduais, há cobrança de ICMS (à alíquota de 12% ou 7%) no Estado de origem. Os exemplos apresentados abaixo deixam esse ponto mais claro.

Não é possível ter uma jurisprudência racional para um imposto irracional. Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Para entender o impacto sobre a distribuição federativa da arrecadação, suponha-se uma situação em que uma indústria no Estado A transfere mercadorias para um centro de distribuição da mesma empresa localizado no Estado B, o qual, por sua vez, vende para um consumidor final no Estado C. Pela legislação vigente até a decisão do STF, o Estado A arrecadaria 12% do valor da operação de transferência e o Estado B ficaria com uma receita correspondente a 12% da margem de distribuição, ou seja, a diferença entre o valor do imposto incidente na venda para o Estado C (à alíquota de 12%) e o imposto recolhido no Estado A. Após a decisão do STF, o Estado B ficará com 100% do valor do imposto incidente na venda para o Estado C, e o Estado A não terá nenhuma receita.

Esse mesmo exemplo serve para explicar o impacto da decisão do STF sobre a guerra fiscal. Suponha-se que o Estado B conceda um benefício para o centro de distribuição que corresponde a uma redução de 75% do imposto devido no Estado (correspondendo a 9% da margem de distribuição). Após a decisão do STF o benefício concedido pelo Estado B corresponderá a 9% do valor total da mercadoria vendida para o Estado C, o que representa um enorme aumento do valor do benefício e uma perda correspondente de arrecadação para o conjunto dos Estados.

Vale notar que esse exemplo se aplica também à industrialização no Estado B, e não apenas a centros de distribuição (ou seja, aplica-se ao caso em que parte da industrialização ocorre no Estado A e parte em empresa do mesmo titular no Estado B). Ou seja, a decisão do STF pode ampliar muito o efeito dos benefícios fiscais do ICMS e, portanto, estimular um aumento da guerra fiscal entre os Estados.

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Essa situação também gera distorções competitivas significativas, estimulando as empresas prejudicadas a criar estabelecimentos em outros Estados para mitigar o prejuízo competitivo, o que tende a reduzir ainda mais a arrecadação do ICMS.

Em suma, a despeito dos argumentos jurídicos que basearam a decisão do STF, e mesmo de argumentos econômicos (como a dificuldade de uma empresa de recuperar o crédito do imposto recolhido em outro Estado por um estabelecimento do mesmo titular), o fato é que os efeitos econômicos e federativos da decisão podem ser muito negativos. A origem de todo o problema está no próprio desenho do ICMS, que prevê a cobrança de parcela relevante do imposto no Estado de origem. Se o Brasil tivesse um bom sistema tributário, com o imposto cobrado no destino, essa distorção não ocorreria.

Apesar de toda a base jurídica da decisão do STF, a realidade é que não é possível ter uma jurisprudência racional para um imposto irracional.

*DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL

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