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Democracia ferida

Por Suely Caldas
Atualização:

Em meados de setembro, quando o caso Renan Calheiros ainda causava indignação, mas já perto da desesperança, o secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), d. Dimas Lara Barbosa, alertou para o perigo de o País ser tomado pela sensação de desânimo e apatia, "risco grave para o futuro da democracia", advertia ele. Não é para menos. Desde o episódio Waldomiro Diniz, em 2003, os brasileiros não têm trégua: escândalos de corrupção se repetem com espantosa freqüência e do governo recebem tratamento de tolerância e banalidade (de Lula, os corruptos ganham carinho, e do PT, absolvição sem julgamento). Os mais vulneráveis à apatia e ao desânimo são os jovens. Diferentemente da Venezuela, onde eles vão às ruas protestar contra o autoritarismo de Hugo Chávez, aqui são representados (ou deveriam ser) pela União Nacional dos Estudantes (UNE), que se transformou em entidade a serviço dos interesses do governo, recompensada com verbas públicas e vista grossa com a venda de carteirinhas para quem não é estudante. Apatia foi o que se viu, há dias, no rosto de universitários que transitavam pelo câmpus e não paravam para ouvir os candidatos à eleição do diretório acadêmico da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). "Sabemos que hoje a UNE é odiada por todos, mas queiram ou não, é quem nos representa", dizia uma candidata para uma descrente platéia de uns 30 estudantes (a PUC-RJ tem 12 mil), que cobrava falta de apoio da UNE para passeata contra Renan Calheiros, organizada por um grupo deles. O alerta de d. Dimas Barbosa procede e preocupa. O governo Lula deixará alguns maus legados, mas o pior deles é o retrocesso, o atraso, o recuo em relação à construção da democracia. Nisso o País andou de marcha à ré e ameaça destruir o pouco que o governo anterior fez avançar. A tolerância com a corrupção (o Conselho de Ética na gestão pública foi desativado), o aparelhamento do Estado com petistas e sindicalistas despreparados, o enfraquecimento e o uso político de empresas e instituições (agências reguladoras fracas, loteadas de políticos, sem autonomia e governadas sob influência política de ministros) são ameaças reais ao futuro da democracia. A liberdade é importante, mas, isolada, significa pouco. A democracia é um regime que precisa de regras, para haver igualdade e respeito entre os cidadãos, e instituições fortes, capazes de garantir integridade e competência na gestão do Estado para proteger a população contra governantes corruptos e mal-intencionados. Foi justamente na estrutura, na base da construção da democracia, que o governo Lula andou para trás. Mas não só. O recente expurgo ideológico de quatro economistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra um governo disposto a atentar também contra a liberdade intelectual, um campo aparentemente preservado até agora - exceção feita ao período de Carlos Lessa na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que deflagrou uma revoada de quadros valorosos do banco em 2003, entre eles Fabio Giambiagi, que foi parar no Ipea e agora é despachado de volta ao banco. Ao se referir ao episódio, o presidente do Ipea, Márcio Pochmann, justificou ser necessário preparar o instituto para planejar o longo prazo. Já o ministro estrategista Mangabeira Unger se escondeu, calou-se. Quem acompanha o trabalho do Ipea sabe que Pochmann não fala a verdade. Desde sua criação, em 1967, seus pesquisadores produzem estudos, identificam causas de nossos problemas e propõem planos de ação de longo prazo para sucessivos governos. Pochmann deve desconhecer que saiu da atual equipe do Ipea a pesquisa que mediu a redução da miséria no País por efeito da aposentadoria rural. Que, enquanto o PT pregava a criação de um absurdo fundo contra a fome cobrando gorjetas em restaurantes, o Bolsa-Família nascia das cabeças de pesquisadores do Ipea, liderados pelo economista Ricardo Paes de Barros, conhecido mundialmente como um gênio em pesquisa social. Ignora estudos e propostas para a área de comércio exterior produzidos por Regis Bonelli, um dos expurgados. E o detalhado levantamento em que o economista Armando Castellar calculou o custo da lentidão da Justiça brasileira, seu efeito perverso sobre o investimento e propôs ações para agilizar e tornar a Justiça eficaz. Pochmann disse que vai trabalhar com pesquisadores de universidades. Vai desprezar o patrimônio de experiência, competência, talento e dedicação de 40 anos do Ipea? Preconceito ideológico ou burrice? *Suely Caldas é jornalista. E-mail: sucaldas@terra.com.br

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