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Descolamento 2.0 e deslocamento 1.0

Por Dionísio Dias Carneiro
Atualização:

A grande queda coordenada de comércio e produção no quarto trimestre de 2008 desmoralizou a ideia de que a Ásia estaria descolada da crise americana e o discurso da marolinha. A recuperação conjunta dos mercados acionários, entre meados de março e o final de maio de 2009, revivem um novo e igualmente esperançoso tipo de descolamento. Chamemo-lo de descolamento 2.0. Este é mais complexo. Significa que a dinâmica asiática, que era impulsionada pela produção de bens comerciáveis, pode ser preservada, apesar da queda drástica das importações dos países mais ricos do Ocidente, atingidos por uma grave recessão. Ao contrário da versão 1.0, não significa que a simples defesa do crédito numa região importante para a dinâmica da economia global, o cenário chamado Bretton Woods II, seria suficiente para protegê-la do encolhimento súbito dos fluxos internacionais de capital e de crédito para o comércio. A versão 2.0 do descolamento explica a recuperação dos preços das ações em todo o mundo, a valorização dos preços das commodities e a diminuição dos prêmios de risco. De quebra, beneficia as dívidas soberanas, valoriza o câmbio e baixa o custo do capital para vários países, entre eles o Brasil. O que estaria por trás desse diagnóstico? Certamente não é um otimismo quanto a um fim breve da crise financeira americana. O último relatório do Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), instituição que dá seguro para os depósitos do sistema bancário americano, mostra que a inadimplência ainda deve deteriorar mais os balanços dos bancos. As injeções de capital até o final do primeiro trimestre eram de menos de 1/3 da destruição de capital e, portanto, a oferta de crédito ainda diminuirá em consequência da queda de qualidade dos ativos bancários e da redução do grau de alavancagem do sistema, que ainda perdura. O que dá alguma viabilidade ao descolamento 2.0 é o que podemos denominar de deslocamento 1.0, um processo de deslocamentos de produção e de consumo que estão em andamento. O deslocamento do consumo mais importante seria um novo dinamismo para o consumo na China, que compensaria, em parte, a perda de dinamismo do consumo americano. Não se trata apenas de uma variação cíclica, fruto da mudança na composição dos gastos agregados nos dois países, que é parte da correção dos desequilíbrios bilaterais: redução da poupança chinesa e de seu superávit externo e aumento da poupança das famílias americanas para corrigir seu excesso de endividamento, que ajuda a diminuir o déficit externo americano. Trata-se de uma mudança estrutural nos gastos das famílias chinesas. Duas novidades capazes de provocar a mudança são o apoio do Estado para os gastos de saúde das famílias e o maior acesso ao crédito barato, graças ao reconhecimento do direito de propriedade da terra rural. Com isso, a terra pode ser oferecida como colateral para empréstimos no sistema bancário, o que acelera de forma significativa a incorporação de pessoas à economia de consumo de massa. Esses são fatores estruturais de longo alcance, capazes de mudar a distribuição intertemporal de consumo, e geram efeitos positivos sobre o destino da produção chinesa de bens de consumo. Em complementação à aceleração dos gastos com infraestrutura, são boas notícias para os produtores de insumos industriais e energéticos. Um segundo deslocamento estrutural importante seria a mudança na indústria de transformação americana, que pode ser iniciada pelo complicado processo de modernização que se espera possa começar pela reestruturação da indústria automotiva, tanto em termos de produtos como de processos, uso de energia, nível de emissões de CO2 e flexibilização de contratos de trabalho. Ambos são deslocamentos cujo tempo de maturação é difícil de prever. Mas que anunciam no horizonte ganhos de eficiência e de produtividade e, portanto, de lucros futuros para uma grande parte das empresas no mundo. Em particular, as produtoras de insumos industriais e energéticos lideram as respostas dos preços das ações brasileiras a essa perspectiva positiva. O problema de sempre é que essas mudanças estruturais ocorrem em horizonte temporal impossível de prever. E, assim, costumam ser sujeitas a ondas de otimismo e de pessimismo que provocam oscilações exageradas nos preços dos ativos. O comportamento de manada dos gestores de carteiras as amplificam e geram preços incompatíveis com os horizontes plausíveis de recuperação cíclica e de mudanças estruturais. *Dionísio Dias Carneiro, economista, é diretor da Galanto Consultoria e do IEPE/CdG

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