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Dinheiro público, interesse privado

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Por Rolf Kuntz
Atualização:

O confiante leitor talvez não saiba, mas o seu dinheiro já custeia escritório político, transporte pessoal e propaganda para senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores. Mais ainda: paga duplamente algumas dessas despesas, porque muitas casas legislativas dispõem de meios de comunicação para divulgar as atividades e facilitar o contato dos parlamentares com os eleitores. Se o Congresso aprovar o financiamento público de campanhas, como parte da reforma política, mais dinheiro do contribuinte será usado para sustentar os interesses pessoais de políticos de todo o País, conhecidos ou desconhecidos, merecedores do respeito ou do repúdio dos eleitores honestos. O duplo financiamento é garantido, por enquanto, pelas chamadas verbas indenizatórias, um mimo entregue a parlamentares municipais, estaduais e federais, contra a apresentação de comprovantes. Um levantamento divulgado ontem pela organização Transparência Brasil dá uma idéia parcial, mas muito sugestiva, de quanto e como se gasta para custear interesses privados de parlamentares. Senado e Câmara dos Deputados pagaram no primeiro semestre "indenizações" no valor total de R$ 50,26 milhões. Na Assembléia Legislativa de São Paulo, a conta ficou em R$ 7,29 milhões. Na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, chegou a R$ 4,30 milhões. Essas verbas cobrem, oficialmente, gastos com divulgação e consultoria, transportes, hospedagem, aluguéis e "diversos". No caso dos parlamentares federais, a indenização dos gastos com transportes não exclui o direito a passagens aéreas, atribuído mesmo a quem mora em Brasília. Cada deputado federal pode cobrar até R$ 15 mil por mês para cobrir uma ampla variedade de gastos. O limite vale também para senadores - até R$ 90 mil por semestre. Segundo o levantamento, cada um dos 85 deputados federais candidatos a prefeito ou a vice recebe, em média, R$ 5,4 mil por mês para transportes e hospedagem - dinheiro suficiente, de acordo com o relatório, para encher o tanque de um carro Uno Mille 45 vezes. Para divulgação e consultoria cada deputado embolsa mensalmente R$ 4,68 mil, em média. Esse valor, observa o autor do relatório, é quase cinco vezes o novo salário básico de um professor, R$ 950. A festa é nacional e muito animada em todos os níveis de governo. Os vereadores de Porto Alegre recebem como indenização de gastos com transporte a média mensal de R$ 1,4 mil, suficiente para abastecer o Uno Mille 11 vezes. Seus colegas paulistanos gastam R$ 6,3 mil por mês com divulgação e consultoria. Cinco deles, de acordo com o levantamento, gastaram mais de R$ 2,5 mil com transportes, mensalmente. Mas a capital paulista, dirão os mais cordatos, é uma cidade rica. O trabalho, realizado pelo coordenador de projetos da Transparência Brasil, Fabiano Angélico, denuncia a escassez de informações sobre esses gastos. A maior parte das casas legislativas nada publica sobre o assunto. Das 55 mais importantes, apenas 7 divulgam dados pela internet. E os dados conhecidos nem sempre devem refletir o uso efetivo das verbas. Pode-se gastar muito tempo discutindo se as informações são confiáveis, se as prestações de contas são corretas e se as casas legislativas deveriam divulgar essas despesas com regularidade. Tudo isso pode ter alguma importância, mas a questão central é outra: deve haver uma diferença entre o custo de funcionamento do Poder Legislativo, em todos os níveis, e os gastos vinculados a interesses particulares dos políticos. O contribuinte deve pagar o salário de cada parlamentar e os meios de seu trabalho. Se ele tiver de viajar à China para exercer sua função, o custo deve recair sobre o Tesouro. Pode-se discutir longamente os limites desse custeio. Não é fácil determinar, por exemplo, onde termina o interesse público e onde começa o privado, quando se trata do uso dos meios de divulgação de uma casa legislativa. Não sendo possível estabelecer com segurança a linha divisória, paciência. Mas algumas distinções são muito claras. Não há por que financiar com dinheiro do contribuinte o escritório político do parlamentar, nem suas ações promocionais, nem o transporte desvinculado de seu trabalho legislativo. No exercício de sua função, um parlamentar é uma figura pública. Mas é um agente privado quando cuida de seus interesses eleitorais - tão privado quanto os partidos. Se esses detalhes fossem mais valorizados, seria possível poupar muito dinheiro. Clareza de idéias também faz diferença para a política fiscal. *Rolf Kuntz é jornalista

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