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Endividamento, ´pecado original´ do Brasil

Ricardo Hausmann, ex-chefe do BID, alerta que ´os riscos vêm da estrutura da dívida´

Por Agencia Estado
Atualização:

Enquanto o Brasil não se livrar do "pecado original" de seu endividamento, estará condenado a ter um dos maiores risco país do mundo e ficará sujeito ao freqüente mau humor do mercado. Esse é o alerta do professor Ricardo Hausmann, ex-economista chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que atualmente leciona na Universidade de Harvard. O pecado original a que Hausmann se refere é a incapacidade de os países em desenvolvimento contraírem dívida externa na própria moeda ou dívida interna de longo prazo e taxas fixas. "O Brasil sofre com a dinâmica perversa de seu endividamento: os riscos vêm da estrutura da dívida, indexada ao câmbio e à Selic, e não só do tamanho", diz Hausmann. Para ele, nem um aumento do superávit primário garantirá a volta da confiança dos investidores, porque a dinâmica da dívida continuará a ser perigosa. O economista defende que a maior parte do endividamento do Brasil seja indexada a índices de inflação como o IGP-M, o que eliminaria parte da volatilidade e deixaria o mercado mais tranqüilo em relação à trajetória da dívida. "Será muito mais fácil para o Brasil alongar o perfil da dívida com títulos atrelados à inflação, a exemplo do que fez o Chile", afirma. O professor é o organizador da conferência que reunirá a vice-diretora-gerente do FMI, Anne Krueger, com a tropa de elite dos especialistas em economias emergentes, em Washington, nos dias 21 e 22 de novembro. Economistas como Martin Feldstein, presidente da Agência Nacional de Pesquisas Econômicas (NBER, na sigla em inglês), e Stanley Fischer, ex-vice-diretor-gerente do Fundo, para discutir a sustentabilidade do endividamento de países como Brasil e Argentina. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu por telefone: Estado - O que o Brasil precisa fazer para ser visto como um devedor menos arriscado e pagar juros menores? Ricardo Hausmann - O Brasil deve aumentar seu superávit primário e pode reduzir a incerteza política, mas isso não vai necessariamente ser suficiente para baixar o risco país. Precisamos entender por que o Brasil, com o nível de endividamento que tem, precisa pagar juros tão elevados quando tantos outros países desenvolvidos, com o mesmo nível de endividamento (relação dívida PIB de cerca de 60%), não precisam. O principal motivo é o pecado original. Do jeito que está a dívida brasileira, indexada ao câmbio e à taxa Selic, ela embute muita incerteza em relação à sua trajetória, fica muito volátil. O problema não é apenas o tamanho do endividamento, mas também a estrutura. Estado - O risco país está distorcido? Hausmann - Eu não diria isso. O risco país reflete o pecado original, porque qualquer choque externo pode afetar a capacidade de o País pagar a dívida. Quando algum choque faz o real se desvalorizar, isso aumenta os custos da parte da dívida atrelada ao dólar. Aí o governo tenta evitar uma depreciação maior aumentando as taxas de juros, mas o serviço da dívida também cresce com isso. É uma armadilha. Estado - Então, mesmo se reduzirmos a relação dívida-PIB, isso não será suficiente para reduzir o risco país? Hausmann - É claro que isso ajuda, mas ainda vai existir o problema da estrutura da dívida, que a torna arriscada e exige altas taxas. Estado - Qual seria um nível de endividamento sustentável para o Brasil? Hausmann - Não dá para ser preciso, mas o fato é que os países que sofrem com problema de "pecado original" e são "grau de investimento" (considerados seguros pelas agências de classificação, pagam juros menores), como o Chile, têm níveis de endividamento bem mais baixos que o do Brasil. Estado - Existem países emergentes que não sofrem de "pecado original"? Hausmann - Dois casos interessantes são a República Checa e a Polônia. Eles conseguem contrair dívida externa de longo prazo na própria moeda, mas acredito que seja porque irão se juntar à União Européia. Alguns países conseguem contrair dívida doméstica de longo prazo a taxas fixas, como a Índia e o Chile. O Chile consegue ter dívida pública doméstica de longo prazo atrelada a índices de preços, o que pode ser uma opção para o Brasil. Se o país consegue ter dívidas de prazos mais longas atreladas a índices de preços, isso reduz o risco do serviço da dívida, porque a inflação oscila menos que o câmbio. Estado - Em um de seus trabalhos, o sr. aconselha a emissão de títulos da dívida atrelados a índices de preços. No Brasil, há uma demanda crescente por títulos públicos atrelados ao IGP-M. Esses papéis são uma opção melhor do que bônus vinculados ao dólar ou à taxa Selic? E quanto à possibilidade de esses títulos alimentarem expectativas de inflação? Hausmann - Chile, Reino Unido e Israel emitem títulos atrelados a índices de preços e todos têm inflação de um dígito, eles não alimentam expectativas de inflação. O importante é reduzir a incerteza sobre quanto será o serviço da dívida no futuro. Se o serviço está atrelado ao câmbio, é muito incerto. Agora, se o governo remunera de acordo com índices de inflação, a dívida fica atrelada à mesma unidade em que o país recolhe os impostos, o que é menos problemático. No momento em que o mercado acreditar que o Brasil superou o pior da tormenta, os investidores vão apostar que o real irá valorizar - com o dólar caindo, vamos dizer, de R$ 3,70 para R$ 3 - e que a inflação irá aumentar um pouquinho. Com isso, será mais atraente investir nos títulos reajustados pela inflação do que pelo dólar. Daí, provavelmente, será muito mais fácil para o Brasil alongar o perfil da dívida com esses títulos atrelados à inflação. Estado - O meio acadêmico internacional tem sido palco de muita discussão sobre a sustentabilidade da dívida brasileira. O professor Michael Pettis, da Universidade de Columbia, diz que uma reestruturação da dívida brasileira é inevitável. Outros, como o economista John Williamson, do Institute for International Economics, acredita que existem saídas. O sr. acha que o País será forçado a uma reestruturação? Hausmann - Eu não diria que uma reestruturação é inevitável, mas obviamente trata-se de algo que os mercados estão esperando, por isso o prêmio está tão alto. Da mesma forma que o risco país do Uruguai (diferença entre o rendimento dos títulos uruguaios e os do Tesouro americano) está muito alto, refletindo a percepção do mercado de que há um risco grande de calote. Estado - Em uma entrevista no começo de 2001, o sr. dizia que a situação do Brasil e da Argentina era muito parecida e que uma crise brasileira poderia ser muito grave. Hausmann - Alguns fatores tornam a Argentina e o Brasil semelhantes: os dois países sofrem de "pecado original", ambos têm economias bastante fechadas e tiveram de absorver uma paralisação no fluxo de capitais. Por isso, quando o fluxo de capitais seca, o ajuste doméstico precisa ser muito grande. Então, à medida que o País tenta se ajustar à escassez de capital estrangeiro, a taxa de câmbio se deprecia muito, a relação dívida-PIB cresce e a dinâmica da dívida se complica. Aí o governo eleva a taxa de juros, o que piora a dinâmica da dívida. Essa dinâmica perversa é comum aos dois países. Estado - Mas a Argentina tinha câmbio fixo. Hausmann - De fato, o câmbio flutuante dá uma maior flexibilidade ao Brasil. O déficit em conta corrente caiu de forma bastante significativa, sem conseqüências desastrosas. Isso significa que o Brasil está conseguindo lidar com a paralisação no fluxo de capital estrangeiro. Mas também precisa ser dito que, neste exato momento, o Brasil é insustentável. Para que o Brasil se torne sustentável, é necessário um choque positivo, como medidas do governo que agradem ao mercado e uma volta dos capitais. Estado - Por que o sr. diz que o Brasil é insustentável? Hausmann - Porque nas atuais taxas de câmbio e juros, a dívida vai explodir. É preciso ter uma certa valorização do câmbio e corte nos juros para o Brasil se salvar da crise. Estado - Como o sr. avalia a atuação do FMI em relação ao Brasil? Hausmann - O FMI cometeu um milhão de erros em 2001 e 2002 e teve um papel muito pouco construtivo até que finalmente assinou o acordo com o Brasil. Eu acredito que o pacote para o Brasil foi uma boa jogada e espero que permita ao novo governo alívio financeiro para reconquistar a confiança perdida. Estado - O sr. foi um dos principais defensores da dolarização na América Latina. Ainda acredita ser um regime viável para o continente? Hausmann - Para economias fechadas e não tão integradas com os Estados Unidos, como Brasil e Argentina, a dolarização não é uma solução. Mas para países com maior grau de abertura, pode ser melhor dolarizar do que flutuar com pecado original. A combinação câmbio flutuante e pecado original é muito perigosa. Estado - Com a crise asiática e o colapso do "currency board" na Argentina, muitos economistas decretaram a morte dos regimes de câmbio fixo e começaram a decretar que o câmbio flutuante seria uma solução para os países emergentes. O Brasil entrou em crise, mesmo com câmbio flutuante. Afinal, qual é o regime ideal para países em desenvolvimento? Hausmann - Quando se tem "pecado original", flutuação não é uma boa solução, porque o País fica muito vulnerável a choques externos e a política monetária não funciona. A taxa de câmbio flutuante não é uma panacéia, como a experiência brasileira mostra e, por isso é importante mudar a estrutura das dívidas dos emergentes. Estado - Neste momento, qual é a percepção sobre o futuro do Brasil? Hausmann - Na minha opinião, há dois cenários. No virtuoso, o Brasil evita o desastre com uma reviravolta na conta corrente, redução de juros, um pouco de valorização do câmbio e alongamento do perfil da dívida. No outro, a dinâmica da dívida leva a um colapso na credibilidade e uma reestruturação. Estado - O sr. acha que o Brasil, que por muito tempo foi elogiado por ter feito "a lição de casa", de certa forma indica falhas graves do receituário do Consenso de Washington? Hausmann - O problema foi não ter entendido que a globalização financeira é uma questão muito mais complexa e que deixa alguns países mais sujeitos a crises. Anteriormente, pensaríamos que uma taxa de câmbio flutuante e um superávit primário de 3,5% do PIB seriam suficientes para garantir a estabilidade, o que não aconteceu. O mercado financeiro internacional é mais problemático. Mas isso não significa que a liberalização do comércio, a privatização, e disciplina fiscal, outros pontos do Consenso, são ruins. São idéias que têm funcionado.

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