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ESPECIAL-Consolidação no setor de cana desafia tradições

Por INAÊ RIVERAS
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No início da atual temporada de cana-de-açúcar, funcionários da usina São Francisco, no interior de São Paulo, e seus familiares se reuniram para pedir a Deus proteção e uma boa colheita. Trata-se da tradicional missa de abertura de safra, que este ano foi realizada dentro do prédio principal da usina. Em meio ao cheiro doce da cana-de-açúcar, cerca de 150 pessoas rezaram cercadas por imensas máquinas que nos próximos meses irão receber um volume inédito do produto. Entre as oferendas, uma garrafa com álcool, um caminhãozinho de madeira e um facão de cortar cana. "É uma longa tradição. Nossa empresa tem origem familiar, somos católicos assim como muitos de nossos funcionários", afirmou o diretor executivo da usina, Jairo Menesis Balbo. "Agradecemos Deus pela produção e pedimos a Ele ajuda para mais um ano." As missas são realizadas há décadas em boa parte das 380 usinas de açúcar e álcool do país -- a maioria das quais tem nome de santos e são administradas ainda por descendentes de seus fundadores. Porém, alguns acreditam que os velhos costumes podem desaparecer juntamente com modelos antigos de administração no momento em que fusões e aquisições mudam a estrutura do setor. Em menor número e maiores, as novas organizações, algumas delas com operações indo do campo até o consumidor final, devem passar a dominar o mercado. E também são esperadas alterações profundas na comercialização de açúcar e álcool. "Talvez a grande mudança seja na gestão comercial e estratégica do negócio", afirmou o analista Júlio Maria Borges, da Job Economia. "O pessoal que vem para cá é mais propenso ao hedging, a operações no mercado futuro. E tem uma estratégia de integração vertical", disse. Borges vê a produção nacional de cana praticamente dobrando em menos de dez anos mas o grande volume da safra ficaria nas mãos de não mais que 30 grupos, frente a 200 atualmente. O principal grupo produtor de açúcar e álcool, a Cosan, que na safra passada processou 36 milhões de toneladas de cana, é o exemplo mais claro de verticalização na área. O grupo anunciou em abril a compra de ativos da ExxonMobil no país, tornando-se a primeira empresa de energia renovável do mundo a deter operações que vão desde o plantio até postos de combustíveis. A chegada da gigante petroleira BP ao setor, também em abril, é outro exemplo das mudanças que devem se intensificar. A empresa britânica comprou metade da Tropical Energia SA, uma joint venture entre os grupos brasileiros Santelisa Vale e Maeda. A nova companhia vai operar duas destilarias de álcool. "A preocupação passa a ser com o destino final, não mais com a situação na porta da fábrica", disse Antonio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Ele citou como exemplos recentes os investimentos da Cargill e da Crystalsev numa refinaria de açúcar na Síria, as plantas de desidratação de álcool da Coimex e da Crystalsev no Caribe e as instalações da Copersucar no porto de Roterdã. "Hoje todos os grandes grupos já fizeram empresas para cuidar da logística... E os menores devem se unir no processo de comercialização", disse Pádua. Nesse novo ambiente, rituais centenários como as missas de abertura de safra devem perder espaço. "Com a indústria se consolidando e empresas estrangeiras chegando, é provável que essas tradições desapareçam. Um fundo com sede em Nova York ou Londres não vai manter esse tipo de coisa", afirmou Plinio Nastari, presidente da consultoria Datagro. OPORTUNIDADES O Brasil se encaminha para uma safra recorde de cana na atual temporada, por volta das 580 milhões de toneladas, segundo a Conab. A expansão tem sido motivada pelo crescimento do mercado doméstico de álcool e pela perspectiva de exportações crescentes do combustível no médio e longo prazo. Impulsionado pela crescente frota de veículos flexíveis, o consumo de álcool ultrapassou o de gasolina no início deste ano, pela primeira vez em vinte anos. Tal potencial tem atraído fundos de investimento, tradings e companhias de energia. A BP foi a primeira petroleira a entrar na área mas outras devem seguir seus passos. Em apenas um ano, a participação de companhias estrangeiras dobrou na indústria brasileira, para 12 por cento, segundo levantamento da Datagro que teve como referência safra passada. O estudo está agora sendo atualizado com os últimos anúncios. Cerca de 85 novas usinas entraram em operação no Brasil desde 2005, e outras 60 devem começar atividades até 2010, com investimentos totais estimados em torno de 40 bilhões de reais, de acordo com a Unica. A expansão intensificou as preocupações ambientais e sociais e tem pressionado a indústria a mudar práticas adotadas há séculos, como o corte manual. Muitas companhias locais poderão ser absorvidas por multinacionais, mas várias delas vêem o momento como época de oportunidades para expansão, em muitos casos por meio de parcerias. "Os próximos três anos não serão fáceis. Eles chegam com uma capacidade (de investimento) que aqui não temos", afirmou Jairo Balbo. Para enfrentar a concorrência acirrada, ele conversa com um potencial parceiro para um negócio que poderia envolver inclusive uma participação minoritária no grupo, que foi fundado pelo avô de Jairo Balbo, Attilio Balbo. Filho de italianos, Attilio Balbo começou a vida como empregado de uma olaria. Seus filhos também trabalharam em usinas, ocupando cargos como o de motorista de caminhão. A primeira usina da família, a Santo Antonio, também em Sertãozinho, foi adquirida em 1947. A compra da São Francisco ocorreu seis anos depois. Atualmente o grupo fatura 350 milhões de reais por ano, tem uma joint-venture para produzir plástico biodegradável de cana, um portfólio de produtos diversificado, e inaugura no fim do mês sua terceira usina, a Uberaba, em Minas Gerais. "Acho que as referências do setor vão mudar totalmente em dez anos", afirmou Balbo, citando como exemplo de caso bem-sucedido a Santelisa Vale. A companhia, que se tornou o segundo maior grupo produtor de açúcar e álcool do país, nasceu da fusão dos grupos Santa Elisa e Vale do Rosário, no ano passado. Alguns meses depois, o Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo, entrou como sócio minoritário. Depois, no início deste ano, foi a vez do BNDESPar. O último grande passo da empresa, que pretende abrir seu capital na Bovespa, foi a associação com a BP. A família Biagi ainda detém o controle do grupo, que nesta safra deve moer 20 milhões de toneladas. Um dos mais tradicionais clãs do setor sucroalcooleiro, os Biagi guardam um histórico de casamentos e batizados realizados na igreja que fica na mesma propriedade da usina Santa Elisa. "As empresas têm se tornado cada vez mais impessoais, mas acho que alguma tradição vai sempre persistir", disse o acionista Luiz Biagi, cujo pai, o fundador Maurílio Biagi, foi enterrado ao lado da usina. (Edição de Marcelo Teixeira)

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