BRASÍLIA - Os governos estaduais ganharam 87,2% das disputas contra a União envolvendo questões fiscais no Supremo Tribunal Federal (STF), aponta levantamento feito pela advogada da União Andrea Dantas Echeverría. Os dados mostram que a Corte não só distribuiu recursos federais para os Estados, mas também deu combustível para o estouro da crise ao flexibilizar uma série de punições previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) nos últimos anos.
As ações movidas pelos Estados – e nas quais eles foram atendidos – envolvem repartição de recursos, renegociação de dívidas, pedido de suspensão de bloqueios em contas por inadimplência em empréstimos e, sobretudo, a “negativação” de governadores nos cadastros de inadimplência do governo federal. A inscrição nesse cadastro ocorre quando os governos estaduais deixam de prestar contas na forma exigida pela LRF, e uma das consequências é a suspensão de transferências voluntárias (como recursos do governo federal para determinadas obras).
Leia também
O trabalho faz parte da tese de doutorado de Andrea, defendida em maio deste ano. A autora analisou mais de 2,7 mil Ações Cíveis Originárias (ACOs) para identificar quais tiveram a situação de conflito federativo reconhecida pelo STF e que foram julgadas pelos ministros da Corte. Das 251 ações julgadas que envolviam temática fiscal, 250 foram movidas pelos Estados, e eles foram vitoriosos em 218. Nas outras 33, a União saiu vencedora.
O estudo engloba ações movidas desde a Constituição de 1988 até o fim de 2017. De 2018 para cá, os Estados acionaram o STF mais algumas vezes para pedir a suspensão de bloqueios em suas contas devido à falta de pagamento de empréstimos ou para manter o direito a condições mais favoráveis de pagamento da dívida com a União, apesar do descumprimento de pré-requisitos. Segundo Andrea, a tendência de favorecimento aos Estados nos julgamentos se manteve.
“A grande questão aqui é a demonstração de que várias das punições previstas na LRF, que eram para controlar o equilíbrio fiscal dos Estados, não foram implementadas por conta do STF. O STF flexibilizou tanto a LRF que alguns artigos não têm eficácia nenhuma”, afirma a advogada.
A sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000 provocou um salto nas ações movidas pelos Estados contra a União. O objetivo, na maior parte das vezes, é fugir das punições previstas pela lei em caso de descumprimento das regras que buscam assegurar o equilíbrio financeiro.
Nesta quarta-feira, ministros do STF analisam uma série de dispositivos da LRF contestados judicialmente. Um dos temas é a possibilidade de Estados e municípios endividados reduzirem a jornada de trabalho e cortarem salário de servidores. Outro é a possibilidade de o Poder Executivo segurar repasses aos demais Poderes quando há frustração de receitas e necessidade de bloquear despesas, segundo apurou o Estado. Neste último, o relator, ministro Alexandre de Moras, deve se posicionar contra, como antecipou o Estado.
A judicialização das questões fiscais tem preocupado a equipe econômica. Além de agravar a situação fiscal dos governos estaduais ao retardar as medidas de ajuste, também serve de estímulo para que mais governadores procurem a Justiça com o objetivo de conseguir alívio financeiro.
Para o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, Felipe Salto, a judicialização das questões fiscais é preocupante. “A Lei de Responsabilidade Fiscal é um marco das contas pública, mas precisamos de mais do que isso. Precisamos ter o espírito da responsabilidade fiscal espalhado nas instituições e na sociedade em geral. Não dá para dar um passo na direção da austeridade e dez passos na direção do expansionismo”, diz.
Segundo ele, a situação fiscal dos Estados é ainda mais grave do que na União, mas é preciso também assegurar o cumprimento de regras fiscais. “Não adianta a Justiça querer garantir tudo no papel, mas fechar os olhos para a dura realidade das contas estaduais e municipais”, afirma.
Antes mesmo de conseguir ingressar em 2017 no Regime de Recuperação Fiscal (RRF), programa de socorro da União a Estados em péssimas condições financeiras, o Rio conseguiu liminar do STF para suspender o pagamento de suas dívidas com a União. A decisão também protegia o governo fluminense de bloqueios em suas contas por calotes a bancos em operações que tinham o Tesouro Nacional como fiador.
Diante do êxito da estratégia, a receita foi mais tarde copiada pelo Rio Grande do Sul, que até hoje não conseguiu aderir ao programa, mas se beneficia de decisão semelhante que permite o não pagamento de uma parcela mensal superior a R$ 200 milhões.
Minas Gerais, outro que enfrenta graves dificuldades e deve pedir ingresso no Regime de Recuperação Fiscal, também está sob proteção de uma liminar que garante ao Estado um valor menor da prestação mensal da dívida com o governo federal.
Liminares
No estudo, a autora analisou separadamente as ações que envolviam a inscrição de Estados no cadastro de inadimplência do governo federal. Mais da metade dos pedidos de liminar para suspender a “negativação” do ente foi atendida em menos de 10 dias. Ao todo, 80% das cautelares foram concedidas em até 30 dias.
Para Andrea, a postura do STF desincentiva o ajuste fiscal. Ela defende que o Supremo repense a responsabilidade dos Estados e passe a considerar em suas decisões não só o direito fundamental alegado pelos governadores, mas também o equilíbrio fiscal. Para a advogada, de nada adianta fazer reformas e estabelecer novas regras de funcionamento e financiamento do Estado se o Supremo continuar a ter uma postura leniente com os governos regionais.
Na visão dela, o STF está transformando o Orçamento brasileiro na "tragédia dos comuns", com todos disputando pelos seus interesses particulares em detrimento da sustentabilidade das finanças para todos.