Foto do(a) blog

Política Econômica e Economia Política no Brasil e no Mundo

Estupidez brutal

Brutal e renitente. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso

PUBLICIDADE

Por Monica De Bolle
Atualização:

Daqui dos EUA de onde escrevo, a bruma da estupidez, do negacionismo, da incompetência já começou a se dissipar. Sim, Trump ainda é presidente, mas ele e seus asseclas não dominam mais as páginas dos jornais. De um lado, isso acontece porque Trump, apesar de sua frívola judicialização eleitoral, já desistiu de presidir o país dois meses antes da posse de Joe Biden. De outro porque o presidente eleito tem ocupado os espaços com anúncios sobre quem vai compor o seu governo, quais serão as medidas prioritárias, o que fará para combater a terceira e a mais terrível onda da pandemia, e como pretende resguardar a economia. No Brasil, ao contrário do que ocorre ao Norte, a estupidez brutal corre sem rédeas.

Que a estupidez brutal impere não é uma surpresa. Ninguém espera que esse governo que está aí aprenda o que quer que seja, até porque sua incapacidade já se revelou tamanha que todas as máscaras caíram. As eleições municipais deram sinais – ainda tênues, é verdade – de que a população pode estar começando a se cansar das gritarias, dos absurdos, dos desditos. 

Primeira onda da pandemia estourou bem na cara do ministro. Com volúpia. Foto: Marcos Correa/PR

PUBLICIDADE

As pessoas querem políticas públicas, clamam por uma agenda, uma estratégia, um plano, qualquer coisa, enfim, que permita um vislumbre dos rumos do País e da vida de cada um quando 2021 chegar. E 2021 é o ano em que o Brasil estará lidando com desafios simultâneos: o de uma campanha eleitoral precoce para 2022 e o de uma segunda onda da pandemia. A segunda onda da pandemia é tão certa quanto a existência do vírus que a provoca. Ela já está evidente em vários números: o de leitos ocupados nos hospitais, o de novos casos, o de óbitos. Mesmo assim, há quem a negue.

Claro que há quem a negue e é claro, também, que os negacionistas não poderiam estar em outro lugar senão dentro do Ministério da Economia. Há um quê de março no ar. Lembram-se de março? Mais especificamente, do dia 16 de março? Foi há oito meses. Nesse dia, quando a pandemia já estava presente no Brasil, o ministro da Economia veio a público dizer que a economia cresceria mais de 2,5% em 2020. Perto da mesma data, Paulo Guedes também disse que enxotaria o vírus do País jogando sobre o RNA encapsulado uns R$ 5 bilhões. Não se deu conta de que o RNA encapsulado não reage nem às notas, nem às palavras que profere. A única coisa da qual ele precisa é de uma célula hospedeira para parasitar, replicar e se proliferar. Dito e feito, a primeira onda estourou bem na cara do ministro. Com volúpia.

Passada essa experiência, era, se não razoável, justificado imaginar que o Ministério da Economia não iria deixar-se pegar novamente no contrapé, sobretudo porque o vírus nunca deixou o País. Mas as oportunidades de engolir as ondas sucessivas de um RNA encapsulado e obstinado não podem ser desperdiçadas. 

Publicidade

Em pleno alvorecer da segunda onda, um dos secretários de Guedes veio a público dizer que não há onda alguma e que os Estados brasileiros estão muito bem, obrigado, porque muitos já obtiveram a imunidade de rebanho. Lembram-se dela? Lembram-se de como teve gente insistindo que era esse o caminho, o modelo da Suécia? “Deixem a infecção natural acontecer, que logo, logo estará todo mundo imune!”, bradou a estupidez brutal.

É curioso porque a Suécia acaba de abandonar o modelo sueco por causa da segunda onda e acaba de abandoná-lo devido à segunda onda porque já está comprovado, inclusive na Suécia, que imunidade de rebanho é conceito inaplicável a uma situação de infecção natural. Como já escrevi neste espaço, o termo usado por epidemiologistas se refere àquelas situações em que existe uma vacina para uma doença infecciosa com eficácia comprovada. 

Por exemplo, se a eficácia das vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna forem comprovadas, quando começarem a ser distribuídas e as campanhas de imunização estiverem em andamento, seremos capazes de dizer algo sobre imunidade de rebanho. Mas não agora. E certamente não será pelo secretário de Guedes, que já revelou não entender nem de pandemia, nem de economia. Trata-se do mesmo secretário que inventou conceitos inexistentes na disciplina, como PIB privado. Melhor nem perguntar o que é.

Portanto, a estupidez brutal. Brutal e renitente, como o RNA encapsulado. O melhor a fazer, por certo, é ignorá-la com a leveza do mais absoluto descaso. 

*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY 

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.