
14 de novembro de 2019 | 04h00
O Brasil pode se tornar o “celeiro do mundo” e isolar comercialmente os Estados Unidos caso seja estabelecido um acordo de livre-comércio com a China, avaliou o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro.
Para ele, os EUA já sentem o aumento da competitividade brasileira no agronegócio e forçam a China a comprar commodities americanas. Além disso, o acordo entre Mercosul e União Europeia reforça o isolamento de Washington no comércio internacional.
O estabelecimento de uma área de livre-comércio entre Brasil e China foi considerado na quarta-feira 13 pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A fala aconteceu durante evento do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), também conhecido como o “Banco dos Brics”, promovido em Brasília em ocasião da 11.ª Cúpula do Brics. Mais detalhes não foram dados.
A China é a maior parceira na balança comercial brasileira. Dentre diversas commodities, Pequim importa a soja brasileira para ser utilizada como ração suína, enquanto o País compra manufaturados chineses. Em 2018, balança foi superavitária em US$ 29 bilhões.
O presidente da AEB, no entanto, observa que o Brasil não tem condições para fazer um acordo até que melhore a sua competitividade, reduzindo burocracia e simplificando impostos. Os manufaturados nacionais, muito caros e pouco eficientes, seriam substituídos por produtos chineses, prejudicando a indústria nacional, ainda que o agronegócio seja beneficiado com aumento nas exportações.
Leia a entrevista a seguir:
O anúncio é bem-vindo, temos que estar inseridos no mundo. Mas isso envolve muito detalhamento. Hoje, o Brasil não tem condições de fazer um acordo com a China. Nossos custos são muito altos, existe o famoso custo-Brasil, que faz com que os custos de comércio exterior sejam 30% acima do mercado. Ao contrário da China, que, com subsídio e eficiência, tem um custo e preços baixos. Se a União Europeia e Estados Unidos não têm (condições de negociar com a China), muito menos o Brasil. (Pode haver acordo) Em um futuro, após as reformas brasileiras e a redução do custo-Brasil. Se abrir simplesmente um acordo comercial, vai tornar mais barato importar (manufaturados).
E o que precisa mudar internamente?
Primeiro, reforma tributária. Segundo, uma reforma previdenciária, já aprovada, mas precisa entrar em vigor para tomar efeito. Terceiro, investimento em infraestrutura, construção e outras áreas em que estamos atrasados há muitos anos. Nosso custo de logística é muito elevado. Quarto, reduzir a burocracia através do portal único de Comércio Exterior. Quinto, implementar o acordo de classificação de comércio. Todas essas medidas são necessárias e a discussão cria expectativas positivas para o futuro. Com as medidas, 2021 pode ser considerado o ano da virada no Comércio Exterior brasileiro.
A reforma da Previdência foi aprovada e ninguém imaginava. A reforma tributária é difícil porque envolve Estados, municípios e governo federal, mas a gente espera que ocorra pelo menos uma simplificação. O acordo de classificação de comércio começou a ser implementado em 2018. O Portal Único está previsto para terminar em 2021, o que vai reduzir fortemente a burocracia. Sobre investimento em infraestrutura, foram anunciadas algumas concessões e privatizações. Essas medidas vão aumentar a produtividade. A reforma administrativa anunciada nesta semana foi um passo gigantesco nesse sentido. Isso leva um tempo, mas ao menos hoje a gente tem uma expectativa de que algo pode acontecer.
Sim. Mas a China está numa guerra comercial com os Estados Unidos. Os EUA, sabendo da competitividade do Brasil no agronegócio, exigem que a China compre em torno de 30 bilhões de dólares em produtos do agronegócio americano. Os EUA sabem que o problema é o Brasil, concorrente de mercado em soja, milho, açúcar, suco de laranja, carne. Mas temos um custo maior e, se reduzirmos ainda mais o nosso custo de logística, tornamos o produto mais competitivo. Nosso problema são os produtos manufaturados. Até os anos 2000, 60% do que exportávamos eram manufaturados. Hoje, caiu muito, são 36%. E o que gera empregos qualificados são os manufaturados.
Existe um período de transição de, no mínimo, cinco anos, sendo que produtos considerados mais sensíveis podem demorar dez anos. A indústria brasileira não está preparada para nenhuma abertura de mercado hoje. Ela precisa de tempo para se adequar. E precisam ser aprovadas reformas estruturais. Se melhorar a nossa logística interna, passaremos a ter um grande provedor do mundo. E aí podemos dizer efetivamente que o Brasil é o celeiro do mundo.
O Brasil faz parte da união aduaneira. Como união, não pode negociar sozinho. Talvez a conversa seja mais uma intenção, mas demorou 20 anos para um acordo com a União Europeia (anunciado em junho de 2019, agora em processo de aprovação pelos países europeus e sul-americanos). Não significa que demoraria 20 anos com a China, mas não é tão simples. O Brasil tem que ter uma boa relação com a China, o maior comprador mundial de commodities, exatamente o mesmo produto vendido por nós.
Pode. Mas a gente não sabe exatamente o que está sendo discutido (no acordo). Os EUA sabem que, se o Brasil não se mexer, ele vai ocupar espaço do Brasil. Eles estão abertamente procurando fazer comércio e excluir o Brasil da concorrência. O acordo entre Mercosul e União Europeia atingiu em cheio os Estados Unidos porque deu uma reserva de mercado para o Mercosul na União Europeia. Foi por essa razão que os EUA passaram a falar em obrigar a China a comprar entre 30 e 50 bilhões do agronegócio.
Com certeza. Um acordo Brasil e China vai fazer com que a China primeiro compre do Brasil. Se precisar de algo mais, ela compra dos Estados Unidos. Hoje os EUA estão ficando isolados comercialmente. Com o acordo Mercosul-UE já houve isolamento. Os EUA não estão buscando acordo com a China, estão fazendo pressão para terem o que querem. Não é espontâneo. Temos que estar atentos porque tem gente querendo ocupar o nosso espaço.
Neste momento, a gente tem limitações, mas, no futuro, não teremos. Se o que está sendo feito hoje for efetivo, vamos ter outro modo de ver o mundo comercial. Hoje só pensamos em commodities porque em manufaturados não temos preços competitivos. Mas o Brasil não é um país caro, está caro. E aí pode voltar a ser um país competitivo, como foi no passado, na época do milagre econômico. Em 1980, o Brasil exportava mais que a China, Coréia, México, Índia. Hoje, todos exportam mais que nós. Paramos no tempo.
E o que faltou?
Faltou fazer o dever de casa, as reformas institucionais que estamos deixando de fazer. Hoje temos US$ 400 bilhões em reservas, é um país altamente confiável e sólido. Mas nossos problemas são internos, como dívida e déficit gigantescos. O câmbio está altamente favorável à exportação, mas isso não tem mais impacto (como antigamente). O produto precisa ser competitivo.
Encontrou algum erro? Entre em contato
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.