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Europa tenta deixar para trás o fantasma da crise

Continente dá sinais de recuperação, mas ainda tem longo caminho a percorrer 

Por Jamil Chade
Atualização:

LISBOA - Na sede da Cáritas, uma entidade dedicada a socorrer famílias em necessidade, em Lisboa, funcionários contam que se cansaram de dar dinheiro a pessoas desesperadas por causa da crise. Agora, além da ajuda, a organização oferece cursos às famílias. Não se trata de um treinamento para encontrar um emprego, mas simplesmente ensinar a fazer compras no supermercado dentro de um orçamento limitado.

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Alguns princípios básicos: não ir às compras com fome e não pegar o que está nas prateleiras na altura dos olhos, mas sim o que está nos pés, normalmente mais barato. Além disso, a entidade ensina a fazer uma lista de necessidades - e não dos desejos - antes de sair de casa.

Cinco anos após o início da crise na Europa, as aulas da Cáritas são um retrato atual do Velho Continente, acostumado a mais de meio século de expansão econômica e bem-estar social. O curso é reflexo de uma sociedade que, há até pouco tempo, não tinha problemas de dinheiro e, quando tinha, recorria ao crédito.

A crise revelou ao mundo - e aos próprios europeus - uma nova imagem da Europa. O euro, o maior projeto monetário no mundo nos últimos 50 anos e um pilar de uma estratégia de paz num continente marcado pelas guerras, por pouco não desapareceu. Governos que durante anos deram lições ao mundo de como administrar suas economias não conseguiam dar uma resposta à própria crise.

Desgastada e cansada, a Europa viu sua influência internacional ser fortemente afetada e teve de abrir mão até mesmo de seu peso no FMI. Sua população emigrou e mesmo tradicionais marcas passaram a ser compradas pelo capital estrangeiro. Pelo menos dez governos foram derrubados pela crise, milhões ficaram sem emprego e a população foi às ruas de várias capitais. Ao salvar bancos em todo o continente, governos viram suas dívidas explodir e, para arrumar as contas, tiveram de fazer reformas dolorosas. A pobreza reapareceu e a União Europeia praticamente teve de ressurgir como instituição.

Cinco anos depois e com a constatação de que o continente vive uma década perdida, a Europa dá sinais reais de que está passando por uma recuperação e, em várias capitais que foram socorridas, a percepção é de que se está ganhando uma segunda chance.

Foram 18 meses de recessão na zona do euro, a mais grave de sua história. Agora, todos os indicadores de produção, de encomendas e de exportações voltaram a dar sinais de otimismo. O FMI refez para cima suas estimativas e prevê crescimento de 1,2% em 2014 e 1,5% em 2015.

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Dados divulgados no início de maio também apontam a recuperação na periferia do continente, a mais afetada pela crise da dívida. O setor industrial cresceu em abril em praticamente todas a zona do euro. Até os dados sobre as pequenas empresas deram os primeiros sinais positivos desde novembro de 2007. "A recuperação está sendo mais ampla e, portanto, mais sustentável", apontou Chris Williamson, economista-chefe da agência Markit. "A demanda crescente em cada economia alimenta as demais e o crescimento nos outros países."

Parte da explicação para a recuperação tem sido o bom desempenho das exportações, principalmente para a Ásia, que, de certa forma, substituíram o mercado interno. "A recuperação está tomando corpo", comemorou o vice-presidente da Comissão Europeia, Slim Kallas. Mas ela é ainda lenta e muito desigual. A Alemanha crescerá 1,8%, ante apenas 0,6% no caso da Itália.

Reformas. As reformas também começaram a dar sinais de que estão colocando os países a caminho de contas mais saudáveis. Em 2010, o buraco era de 6% do PIB. Em 2012, o déficit da zona do euro caiu para 3,7%. Em 2013, chegou a 3%, o teto estipulado pela UE.

Mas, assim como nas taxas de crescimento, a disparidade no bloco no que se refere à dívida é profunda. Luxemburgo teve superávit em 2013 e a Alemanha fechou o ano com as contas em equilíbrio. Mas a Eslovênia ainda tem um buraco de 14%, a Grécia, de 12,7%, a Irlanda, de 7,2%, e a Espanha, de 7,1%.

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Ainda assim, a tendência de queda voltou a dar confiança aos mercados. A Irlanda foi a primeira a anunciar que estava renunciando ao resgate concedido pela União Europeia e FMI. Em 2010, o país recebeu 85 bilhões para não falir e, em troca, fez uma profunda reforma no Estado e em seus gastos.

Em 2014, a Grécia, que chegou a ter sua permanência no euro questionada, voltou a captar e emitir títulos da dívida. Isso depois do maior calote da história, quando foi socorrida por um pacote de 240 bilhões em 2010 e de ver o PIB encolher 25% em cinco anos.

Neste mês, Portugal seguirá os caminhos da Irlanda e também anunciará a saída do programa de resgate internacional. O resgate para Lisboa foi concedido em 2011 e, da mesma forma como na Irlanda e na Grécia, exigiu do país esforços sociais que levaram a economia a uma recessão de três anos.

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Agora, as reformas também começam a dar resultados. Portugal teve o primeiro superávit comercial em 70 anos e as contas do governo entraram numa trajetória que pode apontar equilíbrio. Após o déficit público atingir 10,2% do PIB em 2009, ele hoje está em 4,9%. Para chegar a isso, Portugal criou impostos e elevou tarifas que permitiram arrecadar 30 bilhões extras desde 2011. Para 2014, a projeção é de crescimento de 0,8% do PIB.

Aos olhos do mercado e da Comissão Europeia, Portugal se transformou no exemplo de "bom aluno" ao implementar uma política de austeridade sem precedentes. Mas, para economistas consultados pelo Estado, nem a estratégia foi a mais adequada nem os ajustes foram suficientes para evitar que o mesmo cenário volte a ocorrer.

"Os desafios ainda existem", diz Armando Guedes, ex-diplomata e professor da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto de Estudos Superiores Militares. "De fato, parte da reforma foi realizada com sucesso e suficiente para convencer os mercados. Mas não foi suficiente para impedir que a crise volte a ocorrer." Em sua avaliação, tanto Portugal quanto outros países apenas trocaram o déficit nas contas por uma dívida externa que pode levar "até duas gerações para ser paga". "Tenho dúvidas sobre a ética de passar isso às futuras gerações", diz Guedes.

A dívida pública portuguesa também não melhorou. No fim de 2013, equivalia a 129% do PIB, bem acima dos 94% de 2010. Só outros dois países têm buracos ainda maiores. Na Grécia, é de 175% do PIB. Na Itália, 132%. No total, 16 países acumularam dívidas acima do teto autorizado pela UE, de 60% do PIB. A média regional hoje é de 92%, acima dos 90% de 2012.

Social. Se a dívida será um problema dos europeus durante anos ainda, a crise social deixada pela austeridade também promete atormentar a UE. Uma das vítimas da crise foram os direitos sociais conquistados há décadas, cortados por governos que precisam se ajustar.

Para a ala mais crítica dos pacotes de resgate, o remédio adotado pela UE apenas aprofundou a crise, gerou um déficit social profundo, um desemprego recorde, a fuga de milhões de pessoas ao exterior e o empobrecimento da sociedade.

O desemprego, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), poderá voltar às taxas de 2007 apenas em 2020. Em 2014, ficará em 11,9% e cairá para 11,4% em 2015, distante ainda dos 8% do início da crise. No total, a Europa destruiu 10 milhões de empregos entre 2008 e 2013, somando 26,7 milhões de pessoas sem trabalho.

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"Somente poderemos declarar a crise como acabada quando os níveis de desemprego retornarem aos patamares de 2007", alertou Guy Ryder, diretor-geral da OIT. "E isso pode levar ainda algum tempo para ocorrer." A crise também mostrou que o euro abafava profundas diferenças sociais e econômicas. Se na Alemanha o desemprego ficou em 5%, ele chegou a 17% em Portugal, 25% na Espanha e 26% na Grécia.

Para aqueles que mantiveram seus empregos, a nova realidade foi uma renda menor. Governos cortaram salários e empresas negociaram com sindicatos reduções nos pagamentos, em troca de manter um certo número de empregados.

Cinco anos depois da eclosão da pior crise desde a ascensão do nazismo, o continente descobriu que terá de reaprender a viver dentro de suas capacidades. Segundo os especialistas, porém, o problema é que isso significa também reconhecer que a sociedade europeia é mais pobre do que pensava, mais endividada do que imaginava e menos influente no mundo do que se apresentava. Mas a esperança é de que, pelo menos desta vez, essas economias vivam de forma sustentável.

Na prateleira de congelados de um supermercado de Lisboa, a aposentada Maria da Luz Magalhães Ferreira sabe o que isso significa na prática. "O que vivíamos era uma fantasia. Mas o que me deixa frustrada é que quem vai pagar pelos erros somos nós da classe média", lamenta. "Somos mais pobres hoje. Só espero que meus filhos voltem a ver dias melhores no futuro." Os políticos europeus garantem que sim.

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