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Europeus desperdiçam mais comida que brasileiros, mostra relatório global

Documento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente contraria fala de Paulo Guedes; índice de desperdício no País, no entanto, ainda é alto

Por Amanda Calazans
Atualização:

A Europa desperdiça um volume anual de comida per capita maior do que o Brasil, segundo o Índice de Desperdício de Alimentos 2021, documento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) com estudos de 54 países sobre o tema. Os dados, divulgados em março, contrastam com recente fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, em evento da Associação Brasileira de Supermercados.

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Na ocasião, ele criticou os “excessos” nas refeições dos brasileiros. “Quando você vê um prato da classe média europeia, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui nós fazemos almoços em que muitas vezes há uma sobra enorme. Até o final da refeição da classe média alta há excessos”, disse o ministro. 

“O problema de desperdício de alimentos é grande mesmo em países que enfrentaram as duas guerras”, afirmou o pesquisador de Alimentos e Territórios da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Gustavo Porpino, um dos revisores do índice. Para ficar nos exemplos de Guedes, o alemão descarta 75 kg de comida por ano, o francês, 85 kg, e o britânico 77 kg. Os menores números são da Rússia, da Eslovênia e da Áustria: 33, 34 e 39 kg. O brasileiro, por sua vez, desperdiça 60 kg anualmente. Esse valor, no entanto, começou em 41,6 kg.

Isso acontece porque o documento do Pnuma reuniu diferentes estudos, classificando-os com alta, média ou baixa confiabilidade. No Brasil, a pesquisa selecionada, da qual Porpino participou, foi feita pela Embrapa e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e disponibilizou um diário alimentar para 686 famílias registrarem suas sobras em texto e foto. Mas especialistas consideram que voluntários podem subestimar as perdas de alimentos com o método, por isso, o valor foi ajustado no relatório global.

A maneira mais eficaz de avaliar o desperdício é pela análise de lixo domiciliar, chamada de gravimetria de resíduos. A técnica é mais utilizada na Europa porque os países são menores e têm coleta seletiva. Aqui, além das dificuldades geográficas e de descarte de resíduos, há especificidades da cultura. Em uma pesquisa de campo para seu doutorado com, 50 famílias de baixa renda de São Paulo, Brasília e Ithaca (EUA), Porpino observou que os restos de alimentos podem ir para o cachorro, para as galinhas ou para o adubo, e isso a gravimetria não mostra.

Desperdício não tem classe

Países emergentes têm desperdiçado no nível de países ricos. De acordo com Porpino, há algumas hipóteses para isso. A família pode não ter os meios necessários para conservar os alimentos e é possível também que, sem ajuda em casa nem tempo, a pessoa que cozinha prepare uma quantidade maior de comida, o que pode terminar estragando na geladeira. Além disso, trabalhadores assalariados fazem uma compra única mensal. “Quando as famílias podem fazer compras menores e mais planejadas, há menor desperdício”, explica ele.

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Mas o desperdício não se restringe à mesa. O pesquisador destaca os problemas que ocorrem no campo brasileiro, como pragas e uso de embalagens inadequadas, que podem acelerar o processo de apodrecimento. Pode ocorrer ainda o desequilíbrio entre oferta e demanda, como a escolha estética de supermercados não comprarem determinados alimentos, o que levaria o produtor a perder colheitas.

Os problemas de produção e oferta também atingem países ricos, e se somam a eles as influências do clima no Hemisfério Norte. Mas, de acordo com Porpino, o desperdício na etapa de consumo é global e a diferença acaba ficando mesmo sobre o que se descarta. Na pesquisa da Embrapa e FGV, observou-se que famílias das classes A e B desperdiçam mais frutas e hortaliças, resultado que reflete o baixo consumo de alimentos saudáveis entre os mais pobres.

Para explicar o problema no Brasil, o pesquisador cita a cultura da fartura, segundo ele, herdada da colonização portuguesa e impulsionada pelo bandwagon effect, fenômeno em que a classe média baixa buscaria reproduzir hábitos de consumo da classe alta, inclusive na alimentação.

Saídas coletivas

CEO da Restin Brasil, Luciano Almeida ensina a preparar pratos com sobras da geladeira no Instagram. Foto: Franciele Barbosa

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Mas a solução não é só individual. “A gente precisa tanto de iniciativas por parte da sociedade organizada, sobretudo das grandes organizações que têm uma responsabilidade maior, quanto do apoio de políticas públicas que ajudem a disciplinar e incentivar essas ações de mitigação de perdas”, afirma o consultor legislativo Marcus Peixoto, que atua na área de agricultura do Senado Federal.

Apesar de não haver linhas de créditos específicas para o combate ao desperdício de alimentos, Peixoto destaca as políticas de crédito rural que permitem que o produtor financie insumos e equipamentos e contrate assistência técnica para evitar as perdas no campo, como consta no Plano Safra 2021/2022, que pretende destinar R$ 251,22 bilhões em financiamentos.

O pesquisador da Embrapa fala em políticas de Estado “que permaneçam independentemente de governo de viés X ou Y”, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Vinculado ao Ministério da Educação, o PNAE contribui para a redução do desperdício no ambiente familiar pelo trabalho educacional que faz com crianças. Enquanto o PAA, do Ministério da Cidadania, fortalece circuitos curtos de produção e consumo a partir da compra de alimentos da agricultura familiar.

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Além disso, Porpino sugere a ampliação da Rede Brasileira de Banco de Alimentos, criada em 2020 pelo governo federal e mantida pelo Ministério da Cidadania, que hoje têm cerca de 200 iniciativas de combate ao desperdício e à insegurança alimentar. “Não estou me referindo a alimentos vencidos ou sobras, mas frutas e hortaliças ainda boas para consumo mas que terminam se estragando em feiras e supermercados”, explica.

Há ainda modelos de negócio que conectam o consumidor ao produtor rural ou a varejos com produtos próximos do vencimento, como a Restin Brasil. Há oito meses, a startup liga empresas com alimentos excedentes a restaurantes ou clientes finais. Para o CEO e cofundador, Luciano Almeida, a ação individual tem importância. “Cozinhar o restinho de comida que você tem na sua geladeira já contribui para a redução do desperdício de alimento. Você não vai acabar com ele, mas vai ser o começo de uma mudança de conscientização.”

Ser criativo com as sobras das refeições é uma prática estimulada pelos especialistas. Para incentivar, a Restin Brasil faz no Instagram lives em que o convidado abre a geladeira e, sob a orientação de Almeida, prepara um prato com os restos de alimentos que encontrar. Com purê de banana-da-terra e costelinha de porco na panela de pressão, por exemplo, fizeram nhoque de banana-da-terra com ragu de costelinha em uma transmissão.