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 Famílias endividadas

Muitos trabalhos acadêmicos foram publicados sobre as causas e as características da Grande Recessão de 2008/2009, iniciada nos EUA e que rapidamente assumiu escala global. Decorridos seis anos desde a quebra do banco de investimento Lehman Brothers, vários países, especialmente EUA e os membros da União Europeia, ainda lutam para debelar os efeitos desse desastre econômico. De toda essa literatura, o livro House of Debt (Casa de Dívida), de Atif Mian (Universidade de Princeton) e Amir Sufi (Universidade de Chicago), parece-me o que mais acertadamente abordou o problema. Esses autores basearam suas conclusões numa das mais profundas pesquisas sobre o consumo das famílias americanas até agora realizadas. Ao trabalharem com microdados até o nível de código postal, puderam observar que o consumo de bens duráveis, como móveis, eletrodomésticos e veículos, começou a declinar em algumas regiões dos EUA, como, por exemplo, no Central Valley, na Califórnia, já em 2006. Tal declínio foi gradualmente se alastrando pelo país, tendo atingido seu pior ponto em várias regiões em meados de 2008, antes, portanto, da eclosão da crise bancária. Deflagrado o processo de fechamento de empresas e demissões, o setor imobiliário foi imediatamente atingido, passando a ser o carro-chefe da desaceleração. Em razão do alto nível de alavancagem financeira das famílias proprietárias de imóveis hipotecados, o efeito da queda de preços deles foi devastador na corrosão da riqueza líquida da população, especialmente dos mais pobres e da classe média, que correspondem a cerca de 95% dos residentes nos EUA. Assim, a crise bancária foi consequência, e não causa, de todo o processo. O detonador foi a queda do consumo das  famílias endividadas. Já em dezembro de 2007, bem antes da quebradeira de bancos, a economia norte-americana encontrava-se em recessão. Trata-se do mesmo fenômeno que Richard C. Koo, notável economista taiwanês, chamou de Balance Sheet Recession (Recessão do Balanço Patrimonial), para explicar a longa estagnação da economia japonesa.  O que se pretende, aqui, é fazer um paralelo, guardadas as devidas proporções, entre o que aconteceu nos EUA e o que pode ocorrer no Brasil.  Nos últimos dez anos (2003-2013), o crédito do setor financeiro para pessoas físicas e jurídicas elevou-se de 24% para 56% do Produto Interno Bruto (PIB). Já o endividamento das famílias, como proporção de sua renda disponível, vem registrando crescimento ainda mais impressionante: segundo o Banco Central (BC), aumentou de 18,3%, no início de 2005, para 46%, em março de 2014. No entanto, o que chama mais a atenção é a elevação do comprometimento da renda mensal das famílias com o pagamento de dívidas. Ainda de acordo com o BC, no período de janeiro de 2005 a março de 2014, essa parcela subiu de 15,6% para 21,4%. Se adicionarmos as dívidas referentes a compras parceladas nos cartões de crédito, não contempladas no número do BC, esse porcentual alcança 25%. Só para comparação, nos EUA, atualmente, tal comprometimento está em torno de 15%. Outras estatísticas também confirmam que o problema do endividamento não deve ser subestimado. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, 65% das famílias com renda igual ou inferior a dez salários mínimos estão endividadas, e nestas o comprometimento médio da renda mensal com juros e amortizações supera 30%. A ampliação do crédito não é em si algo ruim. Pelo contrário, o maior acesso ao sistema bancário aumenta o bem-estar da população e é comum que isso ocorra na medida em que o País se desenvolve e um número crescente de indivíduos se torna elegível para assumir dívidas, em razão do aumento da renda e da formalização do emprego. O que preocupam são a velocidade do crescimento do endividamento da população brasileira e o elevadíssimo porcentual do rendimento mensal já comprometido com o pagamento de dívidas. O fraco crescimento brasileiro se explica principalmente por restrições do lado da oferta de bens e serviços, ou seja, pelo baixo crescimento potencial. Em meu último artigo neste espaço, estimei que, com a população economicamente ativa e a produtividade do trabalho aumentando ambas à taxa de 1% ao ano, tal potencial está próximo de pífios 2% ao ano. O problema é que o endividamento das famílias começa a botar um freio também na capacidade de expansão da demanda, fazendo com que o PIB avance a ritmo inferior ao seu potencial. Depois da divulgação dos últimos dados sobre o mercado de trabalho formal e os relativos à produção industrial em junho, a dúvida entre os analistas é se a economia brasileira está estagnada ou se já vive um processo recessivo, e não qual será a taxa de crescimento do corrente ano. O que espanta é que o governo parece ainda não ter entendido essa dinâmica. Basta surgirem números ruins sobre a atividade econômica para serem anunciadas imediatamente medidas de estímulo ao consumo (ou seja, ao crescimento do endividamento), tais como o adiamento do aumento do IPI sobre veículos e a liberação de recolhimentos compulsórios dos bancos para elevação do crédito - embora esta última, segundo meus cálculos, terá efeito limitadíssimo. A retomada do crescimento, como já se analisou ad nauseam, é por outro caminho, e passa pelo estímulo ao investimento e ao crescimento da produtividade. O sistema bancário brasileiro está bem capitalizado e trabalha com níveis prudentes de alavancagem. As dívidas imobiliárias ainda são baixas como proporção do PIB. Dessa forma, uma recessão desencadeada por excesso de endividamento, como a analisada no início deste artigo, não tende a provocar, em nosso país, crise bancária sistêmica e a assumir a mesma dimensão que nos EUA e na Europa. Mais nem por isso a política econômica deve subestimar seus efeitos. Ela não quebrará o sistema bancário, mas tende a aumentar a inadimplência, restringir o crédito, provocar elevação do desemprego e pode lançar o País em ciclo recessivo de difícil reversão.

Por Claudio Adilson Gonçalez
Atualização:

*Economista, diretor-presidente da MCM Consultores, foi consultor do Banco Mundial, subsecretário do Tesouro Nacional e chefe da Assessoria Econômica do Ministério da Fazenda