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Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

Fraternidade

‘A tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não’

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Por Ana Carla Abrão
Atualização:

Quando escreveu o Samba da Bênção, há mais de meio século, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, não imaginaria um mundo tão cheio de ódio e divisão como o atual. Menos ainda uma situação como a que vivemos hoje, em que o isolamento e distanciamento físico se impõem, empurrando a alegria das noites boêmias para o campo de uma memória quase distante. 

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Mas de tudo, a maior das distâncias entre o Rio de Janeiro de então e o atual que agoniza, afundado em um mar de corrupção e violência, é a da desigualdade social. Mas o Brasil é o Rio de Janeiro. Entre os altos e baixos nos índices de concentração de renda e de redução da pobreza nesses tantos anos, voltamos a piorar e pioramos muito. Exclusão, marginalização e ausência de oportunidades para tantos são as características do Brasil de hoje. Temperadas por intolerância, polarização e a desinformação propagada por fake news.

É sobre tudo isso, ou melhor, sobre o combate a tudo isso que versa a nova encíclica papal. Não por coincidência, a 3.ª encíclica do papa Francisco foi tornada pública no dia em que se celebra São Francisco de Assis, o mais fraterno dos santos cristãos. Fratelli Tutti, a encíclica social recheada de conceitos econômicos, busca mobilizar não só os católicos, mas todas as pessoas do bem, em torno do que há de melhor nas nossas capacidades humanas: o encontro, a convergência, a empatia, a união, a compreensão, a inclusão e a fraternidade. Num mundo tão marcado pelo desencontro, nela o Samba da Bênção ressurge, lembrando-nos que, apesar disso, a vida é a arte do encontro – entre pessoas, entre povos, entre nações. E é desse encontro que um mundo melhor surge.

Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. Foto: Clayton de Souza/Estadão

Embora cometa o erro de usar o termo neoliberalismo de forma excessivamente dogmática, o capítulo V da encíclica destaca a importância de termos políticas melhores. Políticas melhores são aquelas que permitem a geração de emprego, uma melhor distribuição de renda, a inclusão das minorias e o fim das injustiças. Contrapõem-se às ações populistas que visam à perpetuação de grupos no poder e ao interesse individual, lideranças transformadoras que pensam no bem comum e no desenvolvimento econômico e social. Aqui, segue o texto, a grande questão é o trabalho. Ser popular de verdade é dar condições para que todos possam se desenvolver e viver das suas capacidades, iniciativas e forças. Sem negar a importância das redes de proteção social nas sociedades genuinamente fraternas, seu caráter provisório e a necessidade de focalização são um destaque. Da mesma forma, o texto chama a atenção para a degeneração do termo “popular”, por líderes populistas em busca do interesse imediato. Tendo como única finalidade a garantia de votos, responde-se às exigências populares, sem que se avance na árdua tarefa de proporcionar às pessoas as oportunidades e os recursos para o seu desenvolvimento, de forma perene e sustentável.

Não, Fratelli Tutti não foi escrita para o Brasil em resposta à falta de apetite que vemos no governo atual em avançar numa agenda de reformas estruturais que nos devolva a capacidade de crescer e de gerar emprego e renda para uma população que empobrece a cada dia. Não, ela não foi escrita para colocar luz na incapacidade do governo e dos agentes públicos de atacar os privilégios e enfrentar grupos de interesse que jogam o País num impasse diário. Impasse que gera como resultado uma opção distributiva sempre cruel. Ela também não foi escrita para mostrar que a principal motivação para a ampliação do programa universal de renda básica, sem desenho e sem fonte clara de financiamento, é a eleição de 2022 e à custa de um país ainda mais pobre e capturado pelo clientelismo. Ela tampouco visa ao Brasil quando cita a importância da abertura entre os países, do acolhimento dos povos, da importância da sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para o horror crescente que são a intolerância, o fomento ao ódio ou à agressividade que tomaram conta do debate. Não, ela não foi escrita para o Brasil, mas foi.

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Fratelli Tutti clama por fraternidade e método. Fraternidade com método significa estabelecer relações pessoais, institucionais e de política pública que tenham por objetivo o bem comum e a proteção da democracia. Incluir, tolerar, reduzir as diferenças sociais, gerar oportunidades para todos e trabalhar por um mundo melhor é ser fraterno. No Brasil, infelizmente nunca estivemos tão distantes disso. Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. E por isso mesmo, mais tristes. Que o Samba da Bênção, que é só fraternidade, continue nos lembrando que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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