Geração pós-Real encara a inflação

Como jovens que nasceram e cresceram na estabilidade estão vendo, pela primeira vez na vida, a inflação encostar nos dois dígitos

Publicidade

PUBLICIDADE

Por Alexa Salomão
4 min de leitura

Os mais velhos sabem. Um dragão verde e violento, que cospe fogo e tudo incinera, reinou absoluto como símbolo de um dos piores males que assolou a economia nacional: a inflação. Em 1994, quando o Plano Real triunfou feito um São Jorge, o bicho sucumbiu. De lá para cá, desapareceu do imaginário popular. Pergunte a um jovem que cresceu na estabilidade que animal representa a inflação. A não ser que ele seja leitor de crônicas da economia do século passado, não vai saber. A inflação para essa geração não é um dragão. É, no máximo, uma lagartixa feiosa. 

No ano em que completa a sua maioridade, 21 anos, a estabilidade já não está tão estável quanto antes. Nos 12 meses encerrados em julho, a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulou alta de 9,56%. O Estado conversou com jovens na faixa de 20 anos para saber como eles veem, pela primeira vez na vida, a inflação se aproximar dos dois dígitos.

Leia também

A maioria tem dificuldade até para definir o que é inflação: “alta de preços por causa da crise; aumento de impostos”, foram algumas tentativas de definição. Mas isso não significa que esteja alheia à perda de valor de compra da moeda. Ao contrário. A nova geração tem senso aguçado de quanto vale o real. 

Câmbio. Evandro Silva lamenta os efeito da alta do dólar Foto:

Evandro Eliziario da Silva, 19 anos, que vive com a família na zona leste da capital paulista, se baseia no pão e no leite para medir a inflação. “Quando eu era criança, meu avô me dava duas, três moedas de 50 centavos para eu comprar pão e leite. Não se compra nada com moedas hoje.” O que mais lhe incomoda é o efeito da alta do dólar, que prejudica o seu passatempo favorito, andar de skate. Sempre que pode, sai do trabalho no Tatuapé, pega o metrô para o centro e vai fazer manobras na Praça Roosevelt. “As camisetas mais legais da DGK (marca descolada criada por um skatista americano) custam pelo menos uns US$ 50: isso hoje dá mais de R$ 150 e acho que é um tipo de inflação, não?” 

Algo que causa estranhamento aos jovens é ver que preços podem subir de maneira acelerada e generalizada – e não pontual e lentamente, como parecia a lógica. Barbara Castellari Peixoto, de 20 anos, se mudou de Barueri para a capital paulista, onde cursa Direito na Universidade Mackenzie. Ganhou um carro dos pais. Ocorre que, pouco antes da compra, o preço do veículo subiu, algo que lhe pareceu inimaginável. Também estranhou o aumento das passagens aéreas, das roupas, de tudo, enfim, ao mesmo tempo. “Havia uma estabilidade maior, agora está tudo subindo. Eu nunca senti antes o que estou sentindo agora”, diz. Ela até pediu aumento de mesada. “Mas acho que meu pai não vai dar.” 

Lista de compras. Para economizar, Kally trocou produtos Foto:

Continua após a publicidade

Os pais, aliás, que viveram a hiperinflação, têm apresentado as melhores lições de como se defender dos reajustes. Tatiane Donesi, de 21 anos, trabalha como vendedora para bancar o curso de Radiologia na Faculdade das Américas (FAM). Nos últimos anos, a vida dela, da irmã e da mãe engrenou. Compraram celular, trocaram os móveis, a geladeira. De um ano para cá, a situação virou. “A gente até precisa de um fogão novo, mas não vai dar. Ficou tudo mais caro. A maior loucura é a conta de luz.” Para fazer o dinheiro render, ela conta que a mãe mudou o jeito de ir às compras. “Agora, procuramos promoções em grande mercados e fazemos compras maiores”, diz Tatiane, que tem passado a lição aos amigos. “Eu falo para todo mundo: não dá para comprar de picadinho, gasta mais.” 

Outras prioridades. Mesmo com os recentes dissabores financeiros, a alta dos preços não é a maior preocupação da moçada. Antes da inflação, estão a instabilidade política, a corrupção, as deficiências na educação e na saúde. A vendedora Kally Ferreira, 19 anos, percebeu que seu R$ 1,1 mil já não rende como antes. “Quando eu era criança, me sentia rica com R$ 1 porque podia comprar dois sonhos e uma coca-cola pequena. Agora, para economizar, troquei o arroz parboilizado, que gosto, pelo normal”, diz ela. “Mas na lista de coisas que mais me incomodam, antes dos preços, estão a política, a falta de ética e a falta de educação. No metrô as pessoas não se levantam nem para dar lugar a uma senhora.”

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.