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Gorjetas encolhem nos EUA após pandemia e digitalização do dinheiro

Com menos pessoas usando dinheiro em espécie, camareiras e carregadores de bagagem viram as chances de ganhar dinheiro extra quase desaparecer

Por Todd C. Frankel
Atualização:

Blanca Limon limpou 11 quartos durante um turno recente de trabalho como camareira no Hilton San Francisco Union Square – esvaziando lixeiras, arrumando camas e limpando banheiros em uma das cidades mais caras do mundo – e ganhou exatamente US$ 3 dólares de gorjeta.

Ela nunca tinha passado por isso. Embora as gorjetas recebidas por ela viessem diminuindo há anos, elas pareceram praticamente desaparecer durante a pandemia. Aqueles dias em que ela podia contar com gorjetas de US$ 1 a US$ 3 em quase todos os quartos que limpava, no início de seus 27 anos de profissão, passaram a ser coisa do passado.

Trabalhadores nos EUA foram bastante impactados por uma economia que usa cada vez menos dinheiro em espécie e pelas novas regras de trabalho durante a pandemia que reduzem as oportunidades de ganhar gorjeta Foto: Paulo Pinto/AE

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“Ninguém mais dá gorjetas”, diz Blanca, 55 anos. “É complicado não receber gorjetas, pois estou precisando muito de um dinheirinho extra.”

Embora a pandemia tenha levado a um aumento nas gorjetas para garçons de restaurantes e entregadores de alimentos – a gorjeta padrão nos EUA subiu de 15% para quase 20% e aumentou até nos lugares onde o consumidor apenas retira a refeição e a leva para casa –, milhões de outros trabalhadores que recebem gorjetas foram, em grande parte, excluídos dessa recém-descoberta generosidade.

Esses trabalhadores que muitas vezes passam despercebidos – camareiras de hotéis, carregadores de bagagens, funcionários de lava rápidos e acompanhantes de cadeiras de rodas, entre outros – foram bastante impactados por uma economia que usa cada vez menos dinheiro em espécie e pelas novas regras de trabalho durante a pandemia que reduzem as oportunidades de ganhar gorjeta.

Esses trabalhadores prestam serviços com expectativas não muito claras de gorjetas. Eles também costumam aceitar apenas gratificações em dinheiro em espécie.

“As pessoas não carregam dinheiro com elas hoje em dia. Escuto isso o tempo todo”, disse John Bragg, 64 anos, que trabalhou por três décadas em aeroportos na área de Washington, a maior parte do tempo como carregador de bagagens.

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Ibrahim Sisay, que ajuda cadeirantes no Aeroporto Internacional Dulles, na Virgínia, disse ter recebido US$ 8 em gorjetas depois de um recente turno de trabalho que incluiu ajudar pelo menos uma dúzia de passageiros a se deslocar pelo terminal e embarcar em seus voos. Alguns passageiros parecem não saber se devem dar gorjeta a ele. E ele disse estar proibido de fazer qualquer menção a uma gratificação.

O que está acontecendo com esses trabalhadores – muitos dos quais são minorias e imigrantes – é em grande parte um mistério para os pesquisadores.

As pesquisas a respeito do comportamento de dar gorjetas tendem a se concentrar no setor de restaurantes, como por exemplo as que descobriram que os clientes dão mais gorjetas quando um garçom se dirige a eles pelo nome. Cartões de crédito e serviços de pagamento digital, como a plataforma Square, oferecem uma grande quantidade de informações, mas elas também costumam ser, em sua maioria, referentes ao setor de serviços de alimentação. Um estudo recente da plataforma para restaurantes Popmenu descobriu que as gorjetas de pelo menos 20% estavam se tornando cada vez mais o padrão.

Mas pouco se sabe em relação a como outros trabalhadores que também recebem gorjetas, como camareiras de hotéis ou acompanhantes de cadeirantes, estão se saindo, disse Michael Lynn, professor da Escola de Administração Hoteleira da Universidade Cornell e um dos principais pesquisadores sobre gorjetas.

“Não conheço nenhum estudo [acerca disso] e estou em busca deles o tempo todo”, disse Lynn.

“É um problema real”, acrescentou. “Nós apenas não sabemos o tamanho dele.”

Pesquisar a respeito do tema é difícil porque as gorjetas para esses trabalhadores geralmente são dadas em dinheiro em espécie e não ficam registradas. Lynn disse suspeitar que os profissionais foram prejudicados pela troca do dinheiro por cartões de crédito e pagamentos por dispositivos móveis.

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Aqueles dias em que alguém sempre tinha algum trocado na carteira parecem muito distantes.

A falta de dinheiro recentemente pregou uma peça em D. Taylor, presidente do sindicato Unite Here, que representa 300 mil trabalhadores da indústria hoteleira na América do Norte. Ele estava prestes a fazer o check-out em um hotel na região de Capitol Hill quando percebeu que não tinha dinheiro para dar à camareira do hotel. Então ele saiu em busca de um caixa eletrônico naquela manhã fria e cheia de vento. Ele deixou US$ 20 em seu quarto, mas disse acreditar que a maioria das pessoas talvez não fizesse isso.

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“A sociedade que não usa mais dinheiro em espécie representa um verdadeiro desafio”, disse Taylor.

A gorjeta é vista por alguns como uma prática ultrapassada – e que dá espaço para os empregadores pagarem um salário mais baixo aos trabalhadores que recebem gorjetas, com a justificativa de que eles vão ganhar mais com as gratificações. E já houve apelos para que os restaurantes, em particular, abolissem as gorjetas e pagassem aos garçons um salário mais alto.

Em um conhecido experimento, o dono de restaurante Danny Meyer anunciou em 2015 que sua famosa rede de restaurantes faria exatamente isso. Mas ele voltou atrás cinco anos depois, quando seus restaurantes reabriram após o pior momento da pandemia.

Lynn, o professor de Cornell, disse que a maioria dos garçons prefere receber gorjetas a um salário fixo, pois assim podem ganhar mais.

Por ora, o sindicato Unite Here está pressionando para aumentar o salário base para esses trabalhadores que recebem gorjetas.

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Isso ajudou Anjannette Reyes, acompanhante de cadeira de rodas no Aeroporto Internacional de Orlando, cujo salário base foi de pouco mais de US$ 5 por hora, em 2021, para US$ 10,50 por hora, atualmente.

Mas ela também percebeu suas gorjetas diminuírem de US$ 45 em um bom dia, empurrando a cadeira de rodas de pelo menos uma dúzia de pessoas pelo aeroporto, para talvez US$ 20. Ela já ouviu todos os tipos de desculpas para as pessoas não darem gorjetas. Elas não carregam dinheiro – “Tudo é pago com cartão”, disse Anjannette. Ou dizem a ela que gastaram todo o dinheiro que tinham com taxas inesperadas pela bagagem.

“Então a gente acaba não recebendo nada”, disse Anjannette.

O sindicato também apoiou novas leis em cidades, como São Francisco e Las Vegas, que exigem a limpeza diária dos quartos de alguns hotéis como parte das medidas de segurança reforçadas durante a pandemia – o que tem o efeito de proporcionar trabalho com frequência regular para as camareiras dos hotéis.

Definir quanto se deve dar de gorjeta é difícil.

Um fórum de discussão da editora de informações turísticas Fodor's Travel sugere US$ 5 para a ajuda com a cadeira de rodas no aeroporto. Um guia de gorjetas da Associação Americana de Hotéis e Hospedagem recomenda de US$ 1 a US$ 5 por noite para as camareiras de hotéis e de US$ 1 a US$ 5 por mala para os carregadores. O guia foi atualizado pela última vez em 2014.

As regras para dar gorjetas nos EUA não são claras nem mesmo em restaurantes.

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Segundo Lynn, as pesquisas realizadas por ele a respeito do tema apontam que quase um terço dos consumidores propunham uma porcentagem inferior a 15%.

“E esse é o setor em que todo mundo espera dar gorjetas o tempo todo”, disse Lynn.

A falta de dinheiro em espécie virou um problema até mesmo em lugares onde todos sabem que cédulas são necessárias – como, por exemplo, em clubes de striptease. Essa é uma das razões de aparentemente todo estabelecimento desse tipo ter um caixa eletrônico. Brandi Campbell, dançarina experiente de um clube no Meio-Oeste dos Estados Unidos, disse que suas gorjetas diminuíram porque os clubes de striptease parecem estar perdendo popularidade conforme as pessoas transferem sua atenção para o mundo online.

Brandi, que defende melhores proteções trabalhistas em seu site “Stripper Labor Rights”, disse que viu apenas uma dançarina experimentar sistemas de pagamento que não incluem dinheiro em espécie. Essa dançarina usou a plataforma de pagamento por dispositivo móvel Venmo para receber gorjetas.

Mas Brandi disse que preocupações em relação à sua privacidade a impedem de adotar a forma de pagamento.

As empresas têm explorado o uso da tecnologia para permitir que as pessoas ofereçam gorjetas aos funcionários do setor de hospitalidade sem usar dinheiro em espécie.

Uma empresa, a Béné, com sede em Fairfax County, Virginia, está trabalhando em parceria com grandes redes hoteleiras em um projeto piloto que permitiria aos hóspedes digitalizar um QR code e dar gorjetas a camareiras e manobristas de hotéis, assim como para funcionários de salões de beleza e manicures.

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O Grupo InterContinental Hotel, dono de marcas como Holiday Inn e Kimpton Hotels, planeja testar o recurso da Béné ainda este ano, disse Brian McGuinness, vice-presidente da rede. Ele também está testando outro aplicativo para gorjetas, o TipBrightly, em uma de suas propriedades em Asheville, na Carolina do Norte.

A empresa hoteleira descobriu que seus bartenders e garçons realmente viram a gorjeta média subir durante a pandemia, disse McGuinness.

Mas as oportunidades para as camareiras receberem gorjetas – que já enfrentava a dificuldade pelos clientes não andarem com dinheiro em espécie – diminuíram ainda mais durante a pandemia, quando a limpeza dos quartos deixou de ser diária e passou ser realizada a cada três ou cinco dias em alguns hotéis do grupo, disse ele.

Mesmo após a retomada da limpeza dos quartos, o maior obstáculo continua sendo a ausência de dinheiro em espécie.

“As cédulas sumiram”, disse McGuinness, que afirmou também ter lidado com esse problema, como por exemplo, no momento de dar gorjeta aos trabalhadores do lava rápido.

Os hotéis têm sido cautelosos em enfrentar o problema desde que a rede Marriott tentou incentivar as gorjetas para as camareiras deixando um envelope em seus quartos para a gratificação. A campanha “The Envelope Please”, foi lançada em parceria com a organização sem fins lucrativos A Woman's Nation, da ex-primeira-dama da Califórnia Maria Shriver em 2014.

A iniciativa teve uma forte repercussão. Segundo os críticos, parecia que a rede de hotéis estava pedindo aos hóspedes para subsidiar os baixos salários e, ao mesmo tempo, transformar uma cortesia em uma expectativa.

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A campanha – e os envelopes – desapareceram rapidamente.

Hoje, a rede Marriott está “nos estágios iniciais” de encontrar maneiras de permitir a gorjeta sem dinheiro em espécie para seus funcionários, disse o porta-voz da empresa, Ben Gerow.

A rede Hilton disse que também está ciente do problema e está analisando opções.

Para os trabalhadores de hotéis, a falta de gorjetas piorou ainda mais desde o início da pandemia.

Jesus Sanchez, que trabalha no serviço de quarto do San Francisco Hilton Union Square, disse que viu as gorjetas caírem de US$ 80, por turno de trabalho, para algo como US$ 5 a US$ 8.

Ele costumava levar as refeições para o quarto dos hóspedes. Elas eram entregues em pratos de verdade com talheres de metal. Agora, tudo é de papelão e plástico, e ele deixa a comida do lado de fora do quarto. Ele nunca vê os hóspedes.

“Não existe a mesma interação de antes”, disse ele.

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Sanchez, 50 anos, pai de três filhos, também trabalha na loja de conveniências do hotel. Ele percebeu que muitos clientes mais jovens vão embora antes mesmo de receberem o recibo das compras ou realizam o pagamento com seus celulares. Não há sequer uma chance de ganhar uma gorjeta. Ele se pergunta se esses clientes já trabalharam em um hotel ou em um restaurante.

“Quero dizer a eles que estamos trabalhando para conseguir um dinheiro extra para nossas famílias”, disse Sanchez./ TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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