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Com guerra na Ucrânia, retorno do padrão-ouro entra em discussão

Para especialistas, no entanto, é precipitado dar adeus à hegemonia do dólar

Por Vinicius Neder
Atualização:

RIO - Nas primeiras semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia, a procura das famílias russas por ouro, como forma de proteger suas finanças, levou o Banco da Rússia (o banco central do país) a comunicar, em 15 de março, que pararia de comprar o metal precioso vendido por instituições financeiras. Dez dias depois, a autoridade monetária anunciou a retomada das compras, a um preço fixo. A medida ajudou a recuperar a taxa de câmbio entre o rublo e o dólar, mas disparou pelos mercados financeiros globais o alerta de que as sanções impostas à Rússia pelos Estados Unidos e por seus aliados, sem precedentes na história, poderiam demarcar uma nova ordem monetária mundial. 

Embora o Banco da Rússia tenha, no início de abril, anunciado o fim do preço fixo nas compras de ouro, a comparação se impõe: a reação russa, lastreando suas transações financeiras em matérias-primas – além do preço fixo para o ouro, a Rússia tem exigido de compradores de suas commodities, como petróleo e gás, pagamentos em rublos –, poderá significar um retorno do padrão-ouro, que vigorou, em maior ou menor grau, até o início da década de 1970? Estaria a hegemonia do dólar realmente ameaçada desta vez?

Barras de ouro; duras sanções econômicas à Rússia ativaram corrida pelo ouro. Foto: Michael Dalder/Reuters - 14/08/2019

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Na internet, não faltam análises sobre como os impactos das sanções econômicas por causa do conflito no Leste Europeu poderão provocar rupturas no sistema monetário global. Uns preveem um retorno ao padrão-ouro. Outros apostam no surgimento de outras formas de lastrear as moedas – as criptomoedas são frequentemente citadas como possíveis “lastros digitais” do futuro, já que, na linguagem de programação por trás delas, o “blockchain”, cada registro de transação é único e irreplicável. 

Fora das redes sociais, muitos economistas consideram prematuro falar em nova ordem monetária mundial e são céticos em relação a um retorno generalizado do padrão-ouro. Uma exceção é Zoltan Pozsar, chefe global de Estratégia de Curto Prazo para Taxas de Juro do Credit Suisse em Nova York. Para o economista, que já trabalhou no Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e no Departamento do Tesouro dos EUA, as sanções contra a Rússia e a reação russa às medidas significam o nascimento de uma espécie de “Bretton Woods 3”, numa referência à conferência internacional de 1944, que marcou o início da hegemonia do dólar. 

Em relatórios enviados a clientes desde o início de março, pouco após o início dos bombardeios e da invasão russa na Ucrânia, Pozsar vem sustentando que o conflito no Leste Europeu e as sanções poderão levar a uma crise nas cotações de commodities. Para o estrategista do Credit Suisse, os preços das matérias-primas vendidas pela Rússia tombarão – em movimento análogo ao dos títulos derivativos de financiamentos imobiliários chamados de “subprime”, que estavam no centro da crise financeira de 2008 – enquanto as commodities produzidas por outros países poderão se valorizar.

O problema, no cenário de Pozsar, é que essa dispersão nas cotações das commodities deverá afetar as moedas, enfraquecendo o dólar e, provavelmente, fortalecendo o renmimbi chinês. Os bancos centrais dos países desenvolvidos do Ocidente tenderão a focar no combate à elevação da inflação com altas de juros, enquanto o Banco do Povo da China (o banco central chinês) poderá tanto vender parte de suas trilionárias reservas em dólar quanto usar o renmimbi para comprar matérias-primas em sua própria moeda. 

‘Passado mítico’

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Professor do Instituto de Economia da UFRJ, Ernani Teixeira Torres Filho vê um momento de ruptura, mas não no sentido de enfraquecimento do dólar. “É o fim da hegemonia (do dólar)? Esses caras estão aí há muitos anos, não vão largar o osso”, afirma Torres Filho. Embora a ideia de atrelar moedas ao ouro ou outras matérias-primas possa remeter a um “passado mítico”, o professor não vê espaço nem para uma volta do “padrão-ouro”, nem para o surgimento de outras formas de lastro, tampouco para a substituição, para já, do dólar. 

No primeiro caso, não faria sentido, segundo ele, atrelar moedas a ativos físicos, ainda mais no caso da Rússia, um país em guerra, que precisa de recursos para financiar o conflito. No médio prazo, à medida que os efeitos das sanções sobre a economia forem se agravando e que os importadores das matérias-primas russas busquem outros fornecedores, a Rússia acabará se desfazendo de parte dos estoques de ouro que compõem suas reservas. 

No segundo caso, pondera Torres Filho, é muito difícil substituir o dólar, usado em praticamente todas as transações comerciais e financeiras do mundo. Esperava-se que o euro poderia ocupar parte do papel do dólar como moeda de transação e de reserva, mas isso não aconteceu. A China pode usar o renmimbi em algumas transações comerciais com vizinhos, mas dificilmente outros países passariam a fazer suas operações na moeda logo. Nem os russos apostam nisso, lembra o professor, chamando a atenção para o fato que, sabendo que as sanções viriam, o governo de Vladimir Putin poderia ter trocado o dólar pelo renmimbi como reserva. 

Anúncio prematuro

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O diplomata Paulo Roberto de Almeida, professor universitário e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, do Ministério das Relações Exteriores, também considera “prematuro” falar em “Bretton Woods 3” ou em perda de hegemonia do dólar. A maioria dos países usa regimes monetários com câmbio flutuante, com mais ou menos “acomodações” via intervenção dos bancos centrais, o que dificulta a reintrodução de lastro em ativos físicos. E a substituição do dólar parece distante. 

“A própria China está hesitando a se aliar demais à Rússia agora, porque teme sanções”, diz Almeida, lembrando que o nível das punições econômicas aplicadas à Rússia é “inédito”, por causa do tamanho da economia russa e do peso do país no fornecimento de matérias-primas. 

Além disso, a China teria uma “capacidade limitada” de assumir a demanda pelas exportações russas, seja porque as sanções bloqueiam rotas marítimas, seja porque a infraestrutura de dutos partindo da Rússia está mais voltada para a Europa. Além disso, para uma moeda assumir a hegemonia no sistema financeiro global, é preciso reunir uma série de condições, explica José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV). A História mostra que essas moedas são sempre de países importantes economicamente, com grande peso no comércio internacional e, principalmente, com regras estáveis e flexíveis, que facilitem a “conversibilidade”. Segundo o pesquisador, tem que ser possível trocar a moeda “pelo o que eu quiser, no momento em que quiser”.

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“A China ganhou muito peso na economia mundial nas últimas décadas, mas sua moeda não é isso. A conta de capitais na China é muito controlada ainda, não existe conversibilidade”, diz Senna, ponderando que o montante de sanções aplicado pelos EUA e seus aliados contra a Rússia pode até levar a algum aumento do uso de outras moedas no lugar do dólar, mas em situações específicas e em pequenos valores. 

Privilégio dos aliados

As mudanças em curso na economia mundial podem estar mais nas regras da divisão internacional do trabalho, vigentes desde meados dos anos 1990, do que no sistema monetário global, na avaliação do professor Ernani Teixeira Torres Filho, do Instituto de Economia da UFRJ. Para ele, assim como no início dos anos 1970, quando o governo americano abandonou de forma unilateral o padrão-ouro e impôs ao mundo um novo sistema monetário global baseado no dólar, os Estados Unidos estariam, agora, novamente, mudando as “regras do jogo” unilateralmente.

A exclusão da Rússia dos sistemas de pagamento e dos mercados financeiros globais, diante do nível inédito das sanções aplicadas, são uma “bomba-dólar”, diz Torres Filho. A “arma” começou a ser ensaiada contra o Afeganistão, em 2001, após os atentados terroristas contra as Torres Gêmeas, foi replicada no Iraque, em 2003, e aprimorada mais recentemente, contra o Irã. Agora, com a Rússia como alvo, o experimento muda de patamar – e mostra aos pares que qualquer país, empresa ou até mesmo pessoa física podem ser desconectados do sistema financeiro global.

“Estamos diante de um movimento tectônico. Tirar os russos do sistema não é um passeio. Estamos tirando 40% do gás comprado pela Europa, um país que tem bomba atômica”, diz Torres Filho.

Para o professor, nas novas regras do jogo que os EUA estariam impondo, o mercado de capitais americano e as cadeias de produção das multinacionais ocidentais não estarão mais abertos a todos os países, diferentemente do que houve nas décadas da globalização desde os anos 1990. Nesse período, todos participaram, impulsionando o crescimento econômico, especialmente na Ásia. A partir de agora, usar o dólar e o mercado americano será um “privilégio” dos aliados. 

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