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Inflação argentina cria nova classe média às avessas

Com a renda encolhendo e sem perspectivas, essa camada da população consome cada vez menos

Por Alexa Salomão (Texto) e Daniel Teixeira (Fotos) - Enviados especiais
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BUENOS AIRES - Nas últimas semanas, a Argentina ganhou projeção internacional por causa do impasse criado em torno da reestruturação de sua dívida. Qualquer argentino médio tem consciência da gravidade do momento. Em conversas triviais é possível ouvir garçons e balconistas explicarem que "o país esta à beira do default" - assim mesmo, usando o termo em inglês para calote. A polêmica em torno da dívida, porém, é o capítulo mais ruidoso de uma crise que mina os pilares da estabilidade local. Na Argentina, há retração dos investimentos, recessão técnica, demissões e - o que mais preocupa - inflação. 

O comércio faz um bom resumo do atual estado de ânimo. Buenos Aires, a capital, está tomada por cartazes e faixas com os dizeres "sale", "liquidación" e "promo" - as muitas maneiras de se anunciar promoções. Há ofertas em restaurantes, farmácias, shoppings, bem como nos charmosos cafés, que são a marca da cidade. As liquidações valem até para calçados e roupas da coleção do inverno que começou há apenas duas semanas. 

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As promos foram adotadas até por lugares resistentes à estratégia, como o bistrô Torcuato & Regina, na Praça San Martín, no bairro Retiro. Com decoração clássica e lustres de cristais, o local foi inaugurado em 2007, quando a Argentina parecia embicar. Era uma homenagem a Torcuato Alvear, presidente no final dos anos 20, momento áureo do passado, e ao novo ciclo do país. O crescimento frustrou-se e o bistrô já teria fechado as portas se não tivesse caído no gosto dos turistas.

Mesmo os argentinos de posses relutam em gastar. Na Avenida Alvear, no bairro de Recoleta, ponto das marcas de luxo, os cartazes anunciando descontos parecem invisíveis para as senhoras que passeiam com casacos de pele adquiridos em outros tempos. Em Porto Madero, o bairro planejado para a alta renda, as vendas de carros de luxo caíram 60% neste ano.

As vendas bombam num ponto bem particular da cidade: nos camelôs que se aglomeram na parte central da Avenida Corrientes. Há tantos, que as calçadas lembram a 25 de Março, rua de produtos populares em São Paulo. Peruanos, bolivianos e agora senegaleses vendem de tudo a preços bem mais em conta porque os produtos são contrabandeados e livres de impostos. À noite, Corrientes exibe uma face mais constrangedora. Conhecida por ser a alma da boemia portenha, cai em sono profundo. “Se alguém me dissesse que eu veria algo assim, chamaria de louco: as pessoas lotavam calçadas, restaurantes, teatros e eu só ia para casa depois das 5 horas”, diz Anibal Ferreira, 60 anos, taxista há 40, que hoje pena à procura de passageiros pela Corrientes. 

Entre os argentinos, uma frase usada para justificar tanto desalento é: “La plata não vence”, numa tradução livre, “O dinheiro está curto”. De fato, encurtou, corroído pela inflação que vem tirando o poder de compra das famílias, principalmente as de classe média, e alterando o modo de vida que os argentinos prezam e não acham nada agradável perder.

Mais pobres. O advogado Leandro Pablo Bottignole, casado, pai de dois filhos, não consegue levar as crianças ao teatro e ao cinema sem gastar mais do que deveria. “Não quero saber se a taxa de inflação é de 1% ou de 5% - porque o governo esconde o valor exato”, diz. “Me interessa quanto posso comprar com o que ganho e já não consigo comprar quase nada porque os preços não param de subir e o que ganhamos não acompanha.” 

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Bottignole usou as próprias roupas para explicar a situação. Na entrevista, usava versões básicas de uma calça Levi’s e de um tênis All Star, já meio batidos. Hoje, as duas peças custam na Argentina cerca de 1,8 mil pesos - o equivalente a 10% da renda dos Bottignoles, que é de 17 mil pesos. “Há um ano, eu podia comprar essas coisas, hoje não”, diz. “Por isso os argentinos querem ter dólares: a moeda americana não perde valor.” 

Para os mais jovens, a nova realidade é um escorregador social. Em 2009, Pedro Joaquim Gerbelle, de 23 anos, deixou Ranchos, cidade da Província de Buenos Aires, para estudar Ciências Políticas na capital. Como a família teve dificuldades para mantê-lo, procurou emprego - em vão. Acabou trabalhando numa produtora de vídeos de familiares. Diante da realidade do mercado, chegou à conclusão que escolhera o curso errado. Largou a faculdade e se dedica apenas à produção de vídeos. 

Pela sua origem, o natural é que Gerbelle estivesse numa condição mais tranquila. É neto de um executivo da multinacional Nestlé e de um dono de uma casa de leilões. A mãe conhece países da Europa, fala francês e catalão. O pai fez incursões pela política. Ambos são veterinários, nunca trabalharam até se formarem e criaram os filhos para seguir o mesmo caminho. Os altos e baixos da economia, porém, mudaram a rota. “Quando olho para trás, vejo que fui criado numa família de classe média alta, mas hoje vivemos como classe média baixa”, diz Gerbelle. “Às vezes, é estranho, porque não fomos preparados para isso.”

Nesse ambiente adverso, o que as pessoas mais temem é perder o emprego. Marcos Vázquez, 34 anos, é um dos 140 operários demitidos neste ano pela Gestamp, fabricante de autopeças espanhola. Desde maio, protesta o quanto pode para recuperar a vaga que lhe garantia 9 mil pesos por mês. Na quarta-feira, trajando o macacão da ex-empregadora, Vázquez engrossava uma mobilização na porta do Ministério do Trabalho que reclamava a contratação de operários de outra empresa, a americana Lear. “Onde vou arrumar emprego? Posso até tentar em outros setores, mas com a situação como está não sei se vou encontrar alguma coisa.” 

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Crise de confiança é o pano de fundo comum em diferentes crises 

Falta de confiança é o pano de fundo da instabilidade na Argentina. Na história recente, os argentinos comparam qualquer dissabor econômico à profunda crise de 2001. Nada lhes parece pior. Naquele ano, a desconfiança dos investidores alimentou uma fuga de capitais e o governo, sem conseguir conter a sangria, pôs fim a paridade entre o peso e o dólar, instituída em 1999. Do dia para a noite, pulverizaram-se a estrutura financeira, as vagas de trabalho e o consumismo edílico por viagens e produtos internacionais mantido pela paridade cambial. 

O cenário caótico incluiu o calote da dívida, cujos efeitos, em parte, alimentam a instabilidade que hoje se vê. Existe um alívio coletivo pelo fato de o país não estar revivendo uma pancada do gênero. Mas há uma crise de confiança, mais sutil, em relação às políticas que levam à crise atual. O congelamento das tarifas de transporte, gás e energia, por meio de subsídios a empresas privadas, inibiu investimentos e sucatearam a infraestrutura. 

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O controle de preços de produtos agrícolas retraiu a produção de carne e de trigo. A política industrial nacionalista reduziu a competitividade do setor automotivo. A falta de transparência nas pesquisas sobre inflação tiraram credibilidade dos dados oficiais.

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