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Insensatez não é opção válida

De quando em quando, ressurge a campanha pela instituição do IVA nacional; boas intenções e ingenuidade explicam essa pretensão

Por Everardo Maciel
Atualização:

Submissão a principismos e a dogmas, como não cumulatividade e extração pelo método do valor agregado, constitui prática que vem mutilando o sistema tributário brasileiro. Vou lembrar alguns episódios recentes.

A partir da esq., senador Mauro Benevides, presidente José Sarney, presidente do STF Rafael Mayer e Ulysses Guimarães no dia da promulgação da Constituição de 1988. Foto: Arquivo Senado Federal

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Caso 1: onda fundamentalista, na Assembleia Constituinte de 1988, proclamou a necessidade de liberar os Estados na fixação das alíquotas do ICMS sem cuidar, por imperícia, de vedar a redução de base de cálculo. Consequência: em contraste com a então vigente alíquota única do ICM, passamos a ter algumas dezenas de alíquotas efetivas do ICMS.

Caso 2: na mesma Assembleia Constituinte, em nome da não cumulatividade, procedeu-se à incorporação dos impostos únicos federais sobre energia elétrica, combustíveis e lubrificantes, transportes, telecomunicações e minerais ao ICM (hoje ICMS).

Consequência: essas bases imponíveis representam hoje cerca de 48% da arrecadação nacional do ICMS, gerando perigosa dependência para as finanças estaduais, e, como lembra Delfim Netto, substituindo a vinculação a investimentos por custeio.

Caso 3: a Lei Kandir, de 1996, promoveu a desoneração do ICMS na exportação de matérias-primas e produtos semielaborados, assegurando ressarcimento aos Estados que perderiam receitas. Consequência: ademais de não se saber, até hoje, se essa medida resultou tão somente em preferência para exportação de commodities em lugar de produtos elaborados, o ressarcimento é operação inacabada, constituindo vistoso “esqueleto” para a União e prejuízo corrente para os Estados, demandando interveniência do STF e do TCU.

Caso 4: a Emenda Constitucional 33, de 2001, autorizou a instituição da Cide-Combustíveis, visando a equilibrar o tratamento tributário dispensado às importações e à produção doméstica de combustíveis, no âmbito da extinção do monopólio da Petrobrás na importação. Além de ser instrumento eficaz no enfrentamento da sonegação no setor, a Cide-Combustíveis era um tributo flexível capaz de compensar as constantes variações nos preços internacionais do petróleo, inclusive mediante o financiamento de subsídios a preços e transporte de combustíveis. Posteriormente, a Emenda 42, de 2003, deu uma esdrúxula redação ao parágrafo 1.º do art. 150 da Constituição e partilhou com os Estados e municípios a arrecadação da Cide-Combustíveis. Consequência: eliminaram-se a flexibilidade e a operabilidade do tributo, o que pretexta a adoção de exóticas medidas para, por exemplo, prevenir greve de caminhoneiros.

Caso 5: injustificadas pressões pela não cumulatividade, porquanto improcedentes os argumentos de verticalização e de repercussão negativa nas exportações, resultaram na adoção do regime não cumulativo do PIS/Cofins. Consequência: a tributação ficou muito mais complexa, especialmente pela instituição de uma miríade de regimes especiais e pelos desnecessários litígios sobre créditos de insumos. Receio que, hoje, não haja um só contribuinte do regime não cumulativo que não prefira voltar ao regime cumulativo.

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De quando em quando, ressurge a campanha pela instituição do IVA nacional, presumidamente inspirado no modelo europeu e jamais adotado nos EUA. Boas intenções e ingenuidade explicam essa pretensão. Desde sua primeira experiência em 1949, o IVA constituiu um avanço em relação às tributações então existentes, sendo bem adaptado às cadeias produtivas constituídas a partir da Revolução Industrial.

A globalização e a revolução tecnológica promoveram, contudo, mudanças profundas em todos os campos. O IVA não lida bem com redes produtivas, revelando-se, como já se disse, “incompatível com o mundo digital”.

Em lugar de olhar para o futuro (tributação de fluxos de caixa – DBCFT, na sigla em inglês – e da economia digital) e consertar, com prudência, os erros do presente, especialmente burocracia e processo tributários, prefere-se discutir experimentos que inaugurariam um novo ciclo de longos litígios, com repercussões perversas sobre as receitas públicas e os contribuintes. Insensatez cobra caro. *CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

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