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Joaquim Levy: 'Desafio do governo é não desequilibrar o câmbio desvalorizado e o juro baixo'

Para ex-ministro da Fazenda e atual diretor do Banco Safra, reforma tributária deveria ser prioridade na pauta, para atrair investimentos e impulsionar a retomada da economia

Por Simone Cavalcanti
Atualização:

Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do BNDES e atual Diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados do Banco Safra, diz que o desafio do governo consiste em não desequilibrar o que chamou de a maior inovação econômica desta gestão: câmbio desvalorizado e juros baixos, apoiados por certa disciplina fiscal. Segundo ele, é uma receita que "não é nem de esquerda nem de direita e que, se mantida por alguns anos sem exageros, tende a aumentar a competitividade do País e gerar crescimento". 

Na sua avaliação, a reforma tributária deveria entrar como prioridade agora na pauta, não apenas porque o Brasil precisa de uma simplificação do sistema de tributos, mas como um atrator de investimentos que pode impulsionar a retomada da economia. "Qualquer reforma, mesmo que gradual e que entre em vigor apenas em 2023 ou 2024, se demarcar claramente e simplificar as regras do jogo, terá um grande impacto no investimento nacional e estrangeiro já agora, antes de 2022. É um passo chave para o País voltar a crescer". Já para os Estados, a reforma administrativa seria mais propícia e, se bem feita, diz, pode melhorar educação, arrecadação, justiça, gestão, registros, saúde. A seguir, os principais trechos da entrevista: 

Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do BNDES e atual Diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados do Banco Safra Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

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O FMI aponta perspectivas mais pessimistas para a economia brasileira, bem como para a relação da dívida pública com o PIB. Quais os caminhos para reverter esse cenário negativo?

O foco imediato continua na vacina e na organização da vida urbana, ou seja, isolamento social com máxima proteção das pessoas e preservação da atividade econômica essencial. Quando alcançarmos 40 milhões de vacinados, cobrindo os mais vulneráveis, a retomada poderá tomar corpo. Mas a vacinação terá de continuar até o final do ano, porque já vimos como novas cepas se disseminam rápido. Vencida a estabilização da saúde, teremos de nos organizar para o esforço de recuperar o ano e meio de restrição às aulas. Apesar de a educação fundamental ser responsabilidade dos municípios, isso tem de ser uma campanha nacional, idealmente com muito apoio do setor privado. E tem de haver também um atendimento urgente no nível médio, que é um período crucial da vida do jovem. Com isso acertado, ficará mais fácil lidar com as expectativas fiscais e a economia vai respirar, talvez com certo apoio do Banco Central por mais uns trimestres.

Diferentemente de 2020, a crise sanitária e econômica no País recrudesce enquanto o Banco Central inicia um novo ciclo de aperto monetário. Na sua avaliação, quais as consequências desse processo do ponto de vista de recuperação econômica?

O Banco Central tem sido claro no sentido de que ele procura por enquanto uma normalização parcial da política monetária. Com a aceleração da inflação, a Selic passou a ser negativa em termos reais, o que não era a proposta do BC em agosto passado. Então, ele tem dito que quer fazer mais agora para poder fazer menos no todo. Isso é importante, porque certamente a maior parte do impulso econômico que herdamos do ano passado, e que era evidente na virada do ano, se dissipou, e a atividade econômica no segundo semestre ainda é incerta. Para isso contribuíram a inflação, o recrudescimento da pandemia e alguns soluços na definição das despesas públicas em 2021. O aumento da Selic em maio já está anunciado, fazendo de junho um bom momento para o BC avaliar se é hora de continuar apertando ou se o freio fiscal e o impacto da pandemia no segundo trimestre indicam uma pausa no aperto, junto com uma atenção especial no apoio ao crédito.

Considerando os riscos locais (como ano eleitoral à frente), aliado à tendência internacional de fortalecimento do dólar, qual o cenário que se vislumbra?

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O financiamento da economia americana, incluindo o déficit público e o esperado aumento de investimentos privados, vai mobilizar a poupança internacional. Até por isso, os EUA estão apoiando a ampliação da quantidade de Direitos de Saque do FMI (a moeda global), para dar liquidez ao resto do mundo, principalmente os países menos desenvolvidos. O BC está atento a isso e entende o risco de termos uma inflação importada pela combinação de câmbio desvalorizado e preço de commodities. O preço internacional do petróleo e dos grãos desaceleraram nas últimas semanas, dando uma pequena trégua na inflação, mas resta o desafio de como não desequilibrar a maior inovação econômica do atual governo, que foi câmbio desvalorizado e juros baixos, apoiados por certa disciplina fiscal. Essa é uma receita que não é nem de esquerda nem de direita e que, se mantida por alguns anos, sem exageros, tende a aumentar a competitividade do País e gerar crescimento, inclusive da indústria, ainda que com algum sacrifício do consumo das famílias, especialmente no começo.

No balanço de riscos que o mercado financeiro tem posto na conta para a depreciação dos ativos, o fiscal é o que tem mais peso. Qual sua linha de raciocínio sobre este temor?

A questão fiscal imediata do Brasil é que o mercado sabe que, com o teto estabelecido pela Emenda Constitucional 95, a despesa primária a preços constantes deve ser menor em 2021 do que em 2019 (antes da covid), mesmo com os R$ 20 bilhões (0,25% do PIB) de créditos extraordinários herdados de 2020. Como os desafios da economia nos próximos meses são grandes, e há o sentimento de que gastos extraordinários, mesmo de 0,5% do PIB, podem trazer riscos imprevistos, o mercado quer saber se as necessidades diretas da população, da economia e do funcionamento das instituições de Estado estão em primeiro lugar no gasto público. Ou se o dinheiro está indo para outras prioridades, podendo vir a faltar para o essencial, criando dilemas e crises à frente. Se as prioridades estiverem certas, é mais fácil o dólar encontrar um equilíbrio benigno. Além disso, temos de pensar no que vem a seguir, se o déficit primário este ano e nos próximos estará acima ou abaixo de 2,5-3,0% do PIB. Nesse sentido, alguns economistas experientes e serenos têm alertado para não se contar com apenas um instrumento jurídico para domar os ânimos gastadores. Precisamos também pensar logo em uma estratégia fiscal para os próximos anos. Aí, um passo importante seria votar uma reforma tributária. É urgente simplificar os impostos indiretos e alinhar a tributação da renda, inclusive a questão bem conhecida dos dividendos acima do lucro presumido. O momento é propício para resolver isso, ou perderemos outros quatro anos e a situação fiscal vai piorar.

Antes da pandemia, os Estados e alguns municípios estavam tentando arrumar suas contas. Quais saídas o sr. vê agora para esses entes?

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Apesar das preocupações agora com a piora da pandemia, os Estados ganharam algum fôlego nos meses recentes, com aumento da arrecadação do ICMS na esteira do consumo de bens manufaturados. Mas, no médio prazo, a saída para os Estados é fazer uma reforma administrativa que transforme seus processos, incorporando novas tecnologias para a provisão dos serviços públicos. Isso, junto com a simplificação do imposto indireto e a abertura da área de saneamento ao setor privado, que é a revolução inadiável para os Estados. Uma reforma administrativa bem feita pode melhorar a educação, arrecadação, justiça, gestão, registros, saúde... E ajudará a aliviar a folha de pagamento, seguindo a mudança demográfica do funcionalismo, que já está acontecendo. É uma agenda extraordinária de vir para o século 21, empolgante para a juventude e que alguns Estados já começaram a fazer.

Considerando o desajuste atual das contas públicas e o descrédito que o País vive, quais as chances de o Brasil conseguir surfar no novo ciclo de commodities?

O atual ciclo das commodities será diferente daquele de 20 anos atrás. Os preços futuros do petróleo mostram declínio à frente. Comida continuará importante, mas a renda chinesa já subiu bastante, e massificar a carne bovina pode não ser a melhor estratégia para os próximos 20 anos. As commodities agora vão ser aquelas associadas à economia verde, aquilo que é necessário para a economia da informação e da energia sustentável. O Brasil vai ter de aumentar a pesquisa mineral, se organizar para competirmos nesses materiais, incluindo as chamadas terras raras. Sempre respeitando o meio ambiente. Essas coisas não se improvisam, requerendo fortalecer as nossas instituições, incluindo IBGE, Agência de Pesquisa Mineral, Empresa de Pesquisa Energética, Instituto Nacional de Propriedade Intelectual e outras tantas. O papel que agências análogas a essas têm tido, com crescimento dos EUA nos últimos 30 anos, é evidência da importância de fazermos esse esforço.

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O descrédito atual frente ao exterior é visível, com o Brasil na lanterna dos pares na atração de investimentos. No ano passado, nem mesmo a China investiu aqui...

O BC fez recentemente uma análise do investimento estrangeiro no Brasil, sublinhando que esse investimento caiu na maior parte dos países em 2020. Eu creio que a simplificação tributária pode nos ajudar muito a aumentar esse investimento. Basta olhar o que mais nos puxa para baixo naquele ranking do "doing business" do Banco Mundial. Estamos essencialmente em último lugar na parte de complexidade de imposto, com as empresas gastando aqui até dez vezes mais tempo para pagar impostos do que nos países concorrentes. Mesmo que haja erro na medição desse tempo, é um sinal óbvio de problema. Nosso Congresso entende a importância das reformas e sabe que a tributação é parte essencial das decisões de investimentos. Qualquer reforma, mesmo que gradual e que entre em vigor apenas em 2023 ou 2024, se demarcar claramente e simplificar as regras do jogo terá um grande impacto no investimento nacional e estrangeiro já agora, antes de 2022. É um passo chave para o País voltar a crescer.

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Nesse sentido, o sr. colocaria a reforma tributária na lista das prioridades agora?

Sim. A reforma tributária seria minha prioridade. É ótimo a reforma administrativa ser discutida, mas talvez ela precise amadurecer, para não se restringir à flexibilização da contratação sem concurso, criação e extinção de órgãos ou acabar com privilégios. Tem de haver uma estratégia, reforçar o trabalho da digitalização do setor público, ter mais planejamento, metas explícitas e acordadas. Porque, se os órgãos de cima a baixo não têm objetivos e metas bem definidos, se os processos não forem repensados, como se pode avaliar e premiar a produtividade dos funcionários?

E a pauta do meio ambiente, como se encaixaria no contexto do desenvolvimento, considerando cada vez mais a atenção de empresas e fundos aos critérios ESG?

Como tudo no Brasil, há grande diversidade no que o governo faz. O BC está com uma pauta verde bastante forte, se aproximando do melhor que está sendo feito lá fora. Vários órgãos ambientais são modelos reconhecidos no mundo inteiro. Há um interesse coletivo de que eles sejam fortalecidos, sendo evidente o apoio da sociedade ao trabalho deles, mesmo quando enfrentam dificuldades. E o mercado financeiro tem se envolvido cada vez mais na questão ambiental porque ela já influencia a precificação dos ativos e faz parte da decisão dos investidores. A boa prática bancária incorpora o ESG ou ASG em um país em que grande parte da economia depende do meio ambiente - do impacto da Amazônia na produção da soja no cerrado à segurança na mineração, água para energia elétrica e para o investimento que se espera no saneamento, etc. Governança é um fator que qualquer gestor olha ao comprar uma ação, começando sobre como os minoritários são tratados e com frequência a responsabilidade social da empresa. Portanto, não é surpresa que a demanda por fundos ASG só cresce, como temos visto no próprio Banco Safra, onde também temos conseguido oferecer carteiras de ações ESG, muito sustentáveis e adaptadas ao perfil individual do investidor.

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