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Jogo em dois tempos

Por Luís Eduardo Assis
Atualização:

Opinião Diz-se dos recém-convertidos que eles demonstram em seu noviciado um fervor capaz de fazer inveja aos fiéis veteranos. Parece não ser o caso da presidente Dilma Rousseff, que, ao escalar a nova equipe econômica, conseguiu decepcionar os seus colegas de crença heterodoxa sem lograr convencer os economistas ortodoxos de que sua conversão é genuína obra do arrependimento. Não poderia ser diferente. Ao contrário do presidente Lula, a economista Dilma tem lá suas convicções sobre teoria econômica e sempre demonstrou a teimosia dos que acham que encontraram a Razão. O núcleo duro desta discussão está hoje no tratamento do déficit público. Os economistas que a presidente tem como referência gostam da ideia de que o combate ao déficit público é um mal desnecessário, quase um exercício de autoflagelação. Isso porque um corte, ou mesmo - como se propõe agora - apenas a desaceleração das despesas do governo, pode contrair a demanda e provocar a queda do nível de atividade, com o que a arrecadação também cai, o que gera nova rodada de cortes e a deflagração de um círculo vicioso que leva à queda da renda e do emprego. Segue daí que a política fiscal deve ser "anticíclica", ou seja, o déficit deve cair quando a economia cresce e é mais fácil de arrecadar mais e deve aumentar quando a economia está crescendo pouco. Outro argumento contra a austeridade fiscal sempre citado nos cânones da "nova matriz econômica" é que cortes de despesas acabam afetando a população mais pobre, que depende de serviços públicos. A presidente Dilma sempre subscreveu essas ideias e deve ter gostado - ou gostaria - de ler o livro de Mark Blyth (Austerity: the history of a dangerous idea). A crise de 2008 deu novos matizes a essa discussão. O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou estudos em que relativizava a austeridade fiscal e admitia o papel dos investimentos públicos na retomada do crescimento econômico, como mostra artigo de Cornel Ban publicado no mês passado (Is there more room to negotiate with the IMF on fiscal policy?, GEGI Working Papers). Outro texto técnico, do próprio FMI, divulgado em outubro, avalia a literatura econômica recente que busca medir o impacto da política fiscal sobre a renda apenas para concluir que não há nenhum consenso nem sobre sua magnitude nem sobre sua direção (Fiscal multipliers: size, determinants and use in macroeconomic projections). O novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tem também suas próprias convicções. A questão, aqui, é mais pragmática que acadêmica. Se olharmos para o passado, está claro que a gastança do governo não conseguiu evitar a estagnação da economia. Se olharmos para o futuro, também é fácil de perceber que promover o aumento do déficit público sobrecarrega a política monetária no combate à inflação, o que exige juros mais altos e concentra ainda mais a renda. Pior: em algum momento, a manutenção da política do primeiro mandato implicaria o rebaixamento do "rating" do Brasil, elevando ainda mais os juros que os papéis brasileiros pagam no mercado internacional. A dívida pública bruta no governo Dilma aumentou 47% e continuará aumentando acima do Produto Interno Bruto (PIB) se a mudança anunciada por Joaquim Levy não for implementada. O problema, no entanto, é que a política econômica de um país não é feita em condições assépticas de laboratório, senão sob o embate de interesses conflitantes. É aqui que a coisa pega. Os equívocos idiossincráticos da "nova matriz econômica" não foram capazes de promover a retomada do crescimento. Mas não é certo que a austeridade fiscal possa fazê-lo no curto prazo. Ao contrário, 2015 tem tudo para ser um ano mais difícil do que este que reluta em acabar. A adoção de uma meta de superávit primário factível não tem o condão por si só de deflagrar um novo ciclo de crescimento. É condição necessária, mas não suficiente. De onde poderia vir o crescimento? Certamente, não do comércio internacional. O preço das commodities já caiu 8,5% no segundo semestre e a desaceleração da China sugere que vai cair mais. Os consumidores também se veem às voltas com alto endividamento. Pelos dados do Serasa, a inadimplência do consumidor cresceu quase 11% em novembro, ante o mesmo mês do ano passado. Os investimentos públicos, por sua vez, estão emparedados pela inépcia gerencial do próprio governo - perdido em suas múltiplas instâncias - e, claro, pela desaceleração dos gastos públicos já anunciada. Uma alternativa seria revigorar as concessões de serviços públicos para investimentos em infraestrutura, mas o escândalo da Petrobrás indica que as grandes empreiteiras estarão ocupadas com outra coisa. Sobra o investimento privado, mas aqui também é duvidoso que os empresários possam relevar a dura realidade dos juros altos e do baixo crescimento da renda que viveremos em 2015. Tempo. A conclusão é de que a estratégia do novo ministro leva tempo para dar certo. Mas o tempo econômico não tem a mesma lógica do tempo político, até porque ele não se bifurca. Daqui a um ano, todos os que se opõem à modesta austeridade fiscal que o novo ministro propõe olharão para trás e não resistirão à tentação de dizer que ela não funciona. Ninguém fará o exercício contrafactual de comparar o 2015 que teremos com o 2015 que teríamos se a política econômica não tivesse sido alterada. A comparação será, como sempre, linear e o próximo ano pode ser, em muitos aspectos, pior que 2014. Esse será o verdadeiro teste para a conversão aos paradigmas da ortodoxia econômica. O risco é de que a presidente se comporte como um doente que aceita abandonar os florais de Bach em favor da quimioterapia, mas impõe a condição de que a cura seja certa, rápida e sem efeitos colaterais. *Luís Eduardo Assis é economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e da FGV-SP. E-mail: luiseduardoassis@gmail.com 

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