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Juras de Davos

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

A celeuma provocada pela escala da presidente Dilma Rousseff na sua viagem de volta de Davos, rumo a Havana, tendeu a ofuscar a substância do seu discurso no Fórum Econômico Mundial 2014. Dadas as limitações de autonomia do Embraer presidencial, a presidente demonstrou, mais uma vez, bom gosto na escolha de suas escalas. Jantar brandade de bacalhau num restaurante decente em Lisboa foi muito melhor do que antecipar a chegada a Havana. Existirão justificativas para explicar escalas anteriores no Porto, com almoço no Cafeína (bacalhau gratinado), ou em Palermo, com jantar na Trattoria Piccolo Napoli (segredo de Estado: polvo ou bucatini com sardinhas?). Mas houve, sim, "falta de transparência" na comunicação do Palácio do Planalto sobre a alteração do roteiro. E, no limite, caberia dúvida quanto às eventuais despesas adicionais acarretadas pela mudança dos planos originais.Quanto ao Fórum de Davos, há vários ângulos a analisar. Inicialmente, caberia avaliar, em vista do histórico de ausências, as razões para o comparecimento de Dilma Rousseff. Em seguida, considerar a credibilidade de suas assertivas à luz tanto de suas declarações anteriores quanto do desempenho de seu governo. Finalmente, avaliar os cenários que poderiam decorrer do cumprimento ou do desrespeito aos supostos compromissos explicitados na Suíça.É difícil de não ter simpatia pelo diagnóstico de que o fórum em Davos não é mais do que um grande minueto, paroxismo do marketing global. Mas o comparecimento é obrigatório, em vista da presença maciça da manada de governantes/competidores. Lula era freguês, embora também fosse assíduo no Fórum Social. Dilma esnobou Davos antes de 2014, quando, com o vento a favor, a crença na "nova matriz econômica", alardeada por Guido Mantega, estava em alta. A decisão de 2014 tem que ver com a fadiga da nova matriz e as ameaças potenciais às economias emergentes geradas pelo tapering nos EUA e pelo arrefecimento do crescimento da China. E também com a agenda eleitoral da presidente. Houve quem comparasse as juras de Davos à Carta ao Povo Brasileiro, assinada por Lula em 2002. Seria o caso de lembrar o provérbio que diz que "palavras voam".A presidente "beijou a cruz". Após sublinhar os feitos de seu governo no terreno social, afirmou que "buscamos, com determinação, a convergência para o centro da meta inflacionária". Sublinhou seu compromisso com responsabilidade fiscal em todos os níveis de governo. Sinalizou que os bancos públicos retornarão às suas "vocações naturais". Classificou a flutuação cambial como a "nossa primeira linha de defesa". Fez promessas quanto aos investimentos em infraestrutura. O contraste entre o desempenho do governo e essas afirmações é marcante. A alternativa caridosa é considerar o discurso como um rol de promessas. O que disse também conflita com o seu discurso em 2012, quando foi não a Davos, mas ao Fórum Social de Porto Alegre. A ênfase ali foi nas "medidas fiscais regressivas", "políticas fracassadas estão sendo propostas novamente na Europa" e "dissonância entre a voz dos mercados e a voz das ruas". Mesmo agora, em Havana, em contraponto a Davos, visitou Fidel e participou de reunião da inócua Celac. É mais do que razoável, portanto, que haja dúvida quanto ao efetivo compromisso da presidente com o que afirmou em Davos.Dilma meteu-se numa encrenca. Se cumprir o que prometeu, o mau desempenho da economia, decorrente de políticas monetária e fiscal compatíveis com as suas promessas, poderá ter repercussão eleitoral relevante. Se, alternativamente, o discurso de Davos tiver sido só mais um "arroubo retórico" da presidente, e tudo continue como antes, terá fornecido munição à oposição.Com base no retrospecto de ações do governo no presente e de discursos da presidente em outros tempos, a segunda alternativa parece bem mais provável.*Marcelo de Paiva Abreu é doutor em economia pela Universidade de Cambridge e professor titular no departamento de Economia da PUC-RIO.

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