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Ex-ministro da Agricultura e coordenador do Centro de Agronegócios da FGV

Opinião|‘Lei de Gérson’

Expressão transformou-se numa espécie de diploma do espertinho, do sabido

Atualização:

Gérson de Oliveira Nunes foi um dos maiores craques meio-campistas de todos os tempos no futebol brasileiro. Com sua esquerda certeira, fazia lançamentos de qualquer distância para qualquer posição no gramado, colocando a bola onde queria e onde queria quem a recebia, especialmente se atacante. Cerebral, estrategista, foi o maestro da seleção brasileira de 1970 tricampeã mundial no México, mesmo tendo companheiros extraordinários e em grande forma, como o magistral e único Pelé, como Tostão, Jairzinho, Rivellino, Carlos Alberto, Clodoaldo, Paulo César Caju, Piazza e outros.

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Admirado e respeitado por torcedores de qualquer equipe, Gérson, apelidado “Canhotinha de Ouro”, teve um arrependimento penoso em sua vida. E não foi nenhum erro em campo, nenhum pênalti mal cobrado ou um passe desperdiçado, nenhuma falta violenta.

Em 1976, contratado pela empresa de comunicação Caio Domingues & Associados, fez uma propaganda da marca de cigarros Vila Rica, fabricado pela J. Reynolds. Na peça publicitária, Gérson concedia entrevista a um interlocutor justificando o porquê de sua preferência pela marca. E disse: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”

“Levar vantagem em tudo” foi a frase que ficou eternizada como uma jogada de gente esperta, malandra, quase sem ética alguma; mesmo hoje, quando grande parte de quem se refere à “Lei de Gérson” nem sabe quem foi o grande meia armador tricampeão mundial, a citação tem a ver com o oportunista de ocasião que só se preocupa consigo mesmo, pouco se lixando para o resto da humanidade. É o comportamento do picareta que tira vantagem até de quem é indefeso em uma situação qualquer.

Por isso, Gérson se arrependeu amargamente de sua fala. Embora não fosse essa a intenção do marqueteiro, foi ela que restou para sempre, e a imagem do craque correto e bom companheiro lamentavelmente se misturou a ela. A expressão foi apropriada pelos usos e costumes brasileiros, transformando-se numa espécie de diploma do espertinho, do sabido que ganha todas, sem escrúpulos, que só cuida do seu interesse, do seu estômago.

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E é isso que se observa no cotidiano de toda gente. No trânsito, sempre tem quem corte pela direita ou na contramão, para ganhar duas ou três posições no semáforo; furar fila em qualquer evento parece gesto de sabedoria, de agilidade mental. Fechar a porta do elevador na cara do outro é normal. Colar na prova, assinar um trabalho de equipe sem ter escrito uma única linha, falsificar documento para pagar meia-entrada, enganar o bedel, tudo normal. Pular a cancela do metrô, sentar na numerada tendo pago só geral no estádio, enganar o vendedor. Prometer o impossível, até em campanhas eleitorais... Sonegar imposto, invadir propriedade alheia, atrasar pagamento de dívida para ganhar algum na aplicação financeira, idem. E tantas mutretinhas e mutretonas como as que temos assistido, perplexos, nas delações sem fim na política brasileira. Apesar do risco da banalização da denúncia, a verdade é que a “Lei de Gérson” é usada sem parcimônia em todo lugar, inclusive em Brasília. Daí que praticá-la no dia a dia acaba virando uma coisa normal para o cidadão comum. Quase como se tonto fosse quem não a usasse.

É preciso mudar isso. Nas mínimas coisas da vida cotidiana, o respeito pelo direito do próximo, começando pelo de “ir e vir” é absolutamente essencial para o bem-estar coletivo. A atenção para com os mais velhos, acatamento aos professores, a integridade da propriedade, o cumprimento dos contratos, o estado de direito enfim, são elementos basilares para a construção de uma sociedade digna e equitativa. Sem isso, descamba-se para o descontrole e para a falta de comando, destrói-se a autoridade, vem a corrupção e a violência.

Gérson era um atleta clássico, um artista em campo, os aficionados da minha geração o aplaudiam e torciam por ele. Essa lei que leva seu nome não faz jus à herança desportiva que nos deixou com sua categoria ímpar. Temos de revogá-la.

Opinião por Roberto Rodrigues
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