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Leniência leniente

Chama a atenção que, ao contrário do que ocorre no setor financeiro, nenhum acionista controlador tenha sido afastado ou ‘inabilitado’

Por Elena Landau
Atualização:

Há meses que o País vive sob a expectativa da próxima delação. São horas e horas de vídeos e áudios revelando as relações entre organizações criminosas e políticos. Mesmo para aqueles que imaginavam a existência de um esquema de caixa 2 nos financiamentos de campanha, choca a naturalidade dos depoimentos, a falta de arrependimento, o deboche e quase uma crença genuína na inocência por parte dos corruptores, como se o pagamento de propina fosse condição necessária para a realização de negócios no Brasil. Não é. Corrupção passiva ou ativa, receber e pagar em troca de favores é um ato de vontade. Não há corrupção sem dolo, sem intenção. 

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A maioria dos brasileiros diz não todos os dias, faz seu trabalho sem pedir nada em troca, é simplesmente parte das obrigações da carreira profissional que escolheu. Durante anos, funcionários de estatais sofreram calados a humilhação de ver o nome de suas empresas nas páginas policiais. Com a troca da governança, e o avanço da Lava Jato, voltaram a ter orgulho das suas casas e com razão. Milhares de funcionários públicos que prestam seus serviços com dignidade, não podem ser parte de uma generalização por conta do comportamento de um punhado de desonestos e oportunistas.

Os pedidos de desculpas, primeiro da Odebrecht e agora dos acionistas da JBS, são um tapa na cara de todo cidadão honesto deste País, porque são cínicos e totalmente desprovidos de real arrependimento, fazem apenas parte dos acordos de leniência negociados pelo Ministério Público. Um ato mecânico e formal.

A notícia de que a JBS teria lucrado com operações cambiais, antecipando sua própria delação, causou revolta. Criminoso se beneficiando da própria torpeza. Se de fato isso ocorreu, os benefícios decorrentes do acordo deveriam ser cancelados imediatamente. 

Esse episódio é mais um elemento importante na discussão sobre leniência. Antes de avançar nos meus argumentos, abro um parêntese. Na luta do bem contra o mal, criou-se no País a ideia de que qualquer ponderação sobre os instrumentos utilizados pela força-tarefa, seja o prazo das prisões preventivas, as condições das conduções coercitivas ou mesmo sobre os termos dos acordos de leniência, torna o crítico compulsoriamente um inimigo da Lava Jato. Sou absolutamente a favor das investigações, mas tenho minhas críticas aos acordos. Nessa altura da operação que mudou o País, com tantos resultados já obtidos, me parece oportuno sugestões e críticas que devem ser entendidas de forma construtiva, sem o cerceamento sobre a opinião daqueles que ousam criticar alguns dos métodos e procedimentos utilizados na investigação.

Os acordos estão sendo questionados por outros órgãos, como TCU ou AGU. E a OAB cassou registro de advogado de delator “perdoado” na negociação. Com isso, se criou uma insegurança jurídica; afinal estão os delatores zerados na sua dívida com a sociedade? Há quem atribua esses questionamentos ao interesse de enfraquecer o poder dos procuradores, tirando incentivos de novas delações, limitando o estrago causado sobre o mundo político. Há quem simplesmente ache insuficiente a punição sofrida pelos criminosos. Basta comparar os benefícios recebidos pela JBS, ou mesmo os valores que a Odebrecht confessou ter pago em propinas, com as multas impostas a essas organizações. Eu me coloco nesse segundo grupo.

Essa confusão tem sua origem na falta de clareza dos objetivos dos acordos. Sendo tratados na esfera penal, o resultado do processo da Lava Jato deveria gerar não só punição exemplar, como prevenção; evitar sua repetição. O custo deveria ser tão grande que não haveria cálculo de perdas e ganhos possível. 

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Mas fica a impressão que o objetivo principal dos acordos conduzidos é a obtenção de informações. Nem punição nem prevenção. Ainda assim, há quem argumente que os acordos são rigorosos demais e podem inviabilizar economicamente a empresa e, com isso, afetar seus empregados, vítimas inocentes dos atos de corrupção dos administradores.

O Brasil passou por uma experiência bem-sucedida de ajuste do sistema financeiro logo após o Real. Assim como hoje há a preocupação com manutenção dos empregos nas empreiteiras, havia também naquela ocasião a necessidade de proteger os depositantes dos bancos que enfrentavam dificuldades ou cujos administradores praticaram atos fraudulentos. A solução encontrada foi o Proer, e hoje o País tem um robusto sistema bancário. As normas que regem os acordos e atos de anticorrupção, algumas definidas em medida provisória modificada na calada da noite, deveriam ser revistas com base na experiência já acumulada pela Lava Jato e pelo Proer. 

Chama a atenção, e causa indignação, que, ao contrário do que acontece no setor financeiro, nenhum acionista controlador tenha sido afastado ou “inabilitado”, todos continuam à frente dos seus negócios.

Ao buscar preservar os CNPJs, muitos CPFs foram salvos juntos. Com a redução das penas, em poucos anos eles estarão de volta, comandando suas empresas como se nada tivesse acontecido. Sem pedir desculpas e debochando da sociedade. No caso JBS, nenhuma punição além de uma multa irrisória comparado aos ganhos. Crime que compensa.

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E se o objetivo era salvar empregos também não se verá o resultado esperado. Muitas empresas, especialmente as multinacionais, obedecem a regras muito restritas de contratação e sem a mudança de governança vão continuar sem poder fechar contratos com as empreiteiras perdoadas nos acordos, com a manutenção do mesmo controlador. O mesmo deveria se aplicar às empresas nacionais e bancos públicos. Mesmo que a AGU concorde com as quantias definidas pelo MP, BNDES e Banco do Brasil não deveriam retomar financiamento sem a troca de comando e governança dessas empresas.

Se não for assim, nada de fato mudará e, em poucos anos, tudo estará como d’antes.  * ECONOMISTA E ADVOGADA

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