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Líderes emergentes mudam as regras do jogo

Por Agencia Estado
Atualização:

Líderes do mundo em desenvolvimento estão crescendo com a força não vista desde Tito, Nasser e Nehru, desafiando as normas da globalização definidas por governos do Ocidente e ativistas ocidentais. Estes tiveram ampla cobertura da imprensa e um público de prontidão - a polícia de Nova York -, mas principalmente por causa do vigor de seus protestos passados. De Seattle a Davos, o turbulento espetáculo itinerante contra a globalização havia insistido no argumento de que a expansão do comércio e dos fluxos de capital não traz nada, exceto opressão e instabilidade para o mundo em desenvolvimento. Suas fileiras engrossaram por causa da economia global, mas também minguaram junto com ela. Os milhares de manifestantes que convergiram para o Fórum Econômico Mundial no ano passado em Davos (Suíça) haviam-se reduzido a algumas centenas quando a festa recomeçou na semana passada, em Nova York. Dentro da festa no Waldorf-Astoria, os contestadores ainda inspiraram certa dose de autocrítica aos astros da era global ali reunidos - diretores executivos, primeiros ministros, príncipes e celebridades -, como se eles tivessem percebido que a época e a oposição haviam mudado. Mas a liderança do esforço para alterar o curso da globalização afastou-se dos rebeldes ocidentais nas ruas - e tendeu para os que eles há muito tempo afirmam representar. Os principais atores agora são líderes dos países pobres, que se uniram contra a elite comercial global e estão exigindo mudanças radicais nas regras do comércio internacional. Este é agora um movimento muito mais vigoroso, especialmente no sombrio despertar depois de uma era de abundância. Ao contrário dos anarquistas, verdes e vermelhos, presidentes e ministros do mundo em desenvolvimento não podem ser ironizados e despachados como um balaio de gatos. Eles têm um assento à mesa, influência concreta. Em novembro, na conferência de cúpula sobre comércio, em Doha (no Catar), eles se exibiram numa mostra de unidade e força que, compreensivelmente, não vinha de países pobres desde o tempo de Tito, Nehru e Nasser. Liderada pela Índia, Brasil e África do Sul, essa frente incipiente se opõe à globalização definida por governos do Ocidente e ativistas ocidentais. Em resumo, eles são a favor do livre comércio (ao contrário dos ativistas), mas segundo seus próprios termos (não os do Ocidente). Surgido da longa frustração com a ordem comercial no pós-guerra, este movimento contém um mistério - por que está irrompendo tão publicamente só agora? "Houve um claro aumento da conscientização dos países em desenvolvimento em Doha e em sua capacidade de negociar", diz o comissário da União Européia (UE) para Comércio, Pascal Lamy, que está prevendo que essa frente "continuará nos empurrando". Em Doha, um bloco de nações em desenvolvimento conseguiu vitórias inéditas. Elas ajudaram a forçar a Europa a reduzir escalonadamente subsídios para os produtos agrícolas do bloco, que alijam do mercado a produção das economias pobres, baseadas na agricultura. Forçaram os Estados Unidos a estudar a imposição de limites a leis antidumping, aplicadas com freqüência contra exportações baratas feitas por potências fabris emergentes. Conquistaram o direito de ignorar patentes de remédios ocidentais quando necessários para combater flagelos do mundo em desenvolvimento como a aids, e continuaram firmes na luta. Mais recentemente, insistiram em novas regras que dariam a seus embaixadores o papel principal na nova rodada sobre comércio lançada em Doha, e perderam. Mas vão voltar. Muitos querem nada menos que uma grande reforma das instituições financeiras globais, que remontam ao acordo de Bretton Woods de 1944, que eles afirmam ter abandonado países emergentes assolados por crises, como a Argentina. "O capital financeiro está globalizado, mas não a tomada de decisões sobre políticas", disse recentemente o presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso. "O sistema de Bretton Woods é obsoleto." A nova aliança tem origens distantes na solidariedade do Terceiro Mundo, nos primeiros anos do pós-guerra. O Grupo dos 77 foi fundado em 1955 como frente unida contra as injustiças do período colonial. Muitos de seus membros ainda eram colônias, que seus governantes impediam de atuar como parceiros plenos no incipiente regime de comércio internacional. Assim que conseguiram a independência, as nações emergentes partiram para o fomento da solidariedade recíproca, como uma união dos pobres contra os impérios que elas acabavam de descartar. Fecharam importações, esperando desenvolver a indústria nacional, e se trancaram num Terceiro Mundo socialista. Muitos dos pobres ainda viviam nesta situação de isolamento parcial no início dos anos 80, quando o Reaganismo e o Thatcherismo provocaram um boom no comércio e na complexidade dos acordos comerciais. Em 1986, a Rodada Uruguai expandiu as conversações e foi além das simples tarifas, para incluir temas como serviços financeiros e propriedade intelectual. A essa altura, muitos países pobres haviam começado a abandonar o capitalismo de Estado e a prosperar como potências exportadoras para os mercados globais - mas poucos tiveram sofisticação para analisar questões como direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (Trips, na sigla em inglês). "Muitos países não entendiam os compromissos que estavam assumindo", diz Leif Pagrotsky, ministro de Comércio da Suécia. Logo os países pobres viriam a sofrer as conseqüências da desmemória. Em 1995, os EUA exigiram que tais países respeitassem em seus detalhes os termos da Rodada Uruguai. Mesmo os que prosperavam como potências exportadoras muitas vezes não conseguiam aplicar novas regras a questões como propriedade intelectual. Os EUA acabaram movendo ação contra a Índia e o Paquistão por violarem leis de patentes. "Ficou claro que, não importando o que havíamos pensado, o outro lado levava tudo isso muito a sério", diz Rashid S. Kaukab, ex-diplomata paquistanês agora no Centro Sul, em Genebra. "Não conseguíamos examinar essas questões muito cuidadosamente." Quanto mais eles estudavam, mais irritados ficavam. Mesmo países florescentes como a Índia e o Brasil acabaram acreditando que, embora saíssem lucrando com o comércio global, o Ocidente lucrava ainda mais. De fato, um conjunto crescente de pesquisas mostrava que o sistema global de tarifas beneficiava os ricos. Segundo o Banco Mundial, os países pobres pagam em média tarifas da Rodada Uruguai, superiores a 14%, índice que representa mais que o dobro do pago por outros países. Pior ainda, exportações do mundo em desenvolvimento tendem a ser produtos agrícolas ou manufaturados simples, que vão para dois dos mercados mais firmemente protegidos no Ocidente por barreiras não tarifárias. Por exemplo, o açúcar africano e o aço brasileiro se defrontam com cotas rígidas e pesados subsídios no mundo desenvolvido. "Países em desenvolvimento são incentivados a diversificar suas exportações", diz o ministro de Comércio brasileiro, Sérgio Amaral. Mas, exatamente quando eles o fazem e ficam competitivos, deparam-se com barreiras no mundo desenvolvido. De meados para o fim dos anos 90, foi aumentando a constatação, entre países emergentes, de que eles haviam sido logrados no Uruguai e que o Ocidente ainda impunha sua vantagem em experiência e influência comercial. "Nas décadas de 80 e 90 era mais fácil para os EUA e a UE intimidar os países em desenvolvimento", diz Alan Winters, membro do Centro de Pesquisa de Política Econômica em Londres. "Eles pegavam alguns (países) de cada vez e atuavam sobre eles individualmente, fazendo-os concordar com a imposição de questões comerciais, como leis de patentes." Para um número cada vez maior de ministros de Comércio no mundo em desenvolvimento, aquilo parecia uma estratégia ocidental para dividir e dominar. A resposta óbvia era uma frente unida, mesmo que os interesses de países pobres nem sempre coincidissem. Já em 1996, numa reunião da Organização Mundial de Comércio (OMC) em Cingapura, países em desenvolvimento começaram a se unir em apoio a um esboço de agenda: simplesmente dizer não a tudo o que os países ricos pedissem. Por ocasião da conferência de cúpula da OMC em 1999 em Seattle, alianças comerciais surgiram entre os países da África, Ásia e América Latina, com exigências cada vez mais sofisticadas para terem maior acesso a mercados de países ricos e uma influência maior nas conversações sobre comércio. Quando vários países pequenos não puderam ter acesso a negociações das grandes potências comerciais em Seattle, várias coalizões de potências menores ameaçaram retirar-se. Sua revolta teve a ver com o fracasso dos entendimentos em Seattle tanto quanto os protestos nas ruas, e muitos ficaram mais marginalizados que nunca. Depois de Seattle, diz o especialista em comércio Kento Hughes, muitos países em desenvolvimento ficaram perguntando: "O que essas reuniões estavam fazendo por eles?" Numa frustração crescente, várias alianças de nações pobres começaram a se articular para a próxima grande conferência de cúpula sobre comércio. Sacudida pela crítica do presidente sul-africano, Thabo Mbeki, aos fracassos econômicos do continente, a África começou a se unir. Em julho de 2001, a ineficaz Organização de Unidade Africana foi substituída pela União Africana, que alardeou ter uma agenda clara para a liberalização do comércio. Liderados pela Tanzânia, os países menos desenvolvidos reuniram-se em Zanzibar a fim de articular um plano para Doha. Em Genebra, embaixadores do Grupo de Opiniões Idênticas - uma coalizão de 13 países da Ásia, América Latina e África - começaram a visitar os escritórios uns dos outros com maior freqüência para o chá, enfocando questões nas quais insistiriam na conferência de cúpula que se aproximava. Zhu Rongji, da China, levou à Índia uma delegação para cultivar confiança. Líderes de cinco países em desenvolvimento - Índia, Brasil, África do Sul, Malásia e Egito - mantiveram conversações informais para definir metas comuns. E um bloco de 50 países começou a fazer pressão contra um motivo de queixa: os Trips. "Houve pressão constante e coordenada, feita pelos vários países em desenvolvimento e missões em Genebra", disse o negociador do Egito para Comércio, Magdi Farahat. "Todo mundo mantinha todos os demais no laço." O alcance de sua vitória mudou as regras do jogo. Eles insistiram não só contra a propriedade intelectual, produtos agrícolas e dumping, mas também em sua queixa de que a Rodada Uruguai os fizera assumir compromissos comerciais que eles não tinham meios de honrar. Os países do Norte (os ricos) fizeram concessões em 50 dessas questões de "implementação" e concordaram em ajudar países pobres a criar condições para assumirem suas responsabilidades relativas a comércio. Isso podia incluir tudo, de ajuda a países para pagar tecnologia para fiscalização alfandegária mais rigorosa até o fortalecimento de sua capacidade para executar pesquisa e análises sobre política governamental. No centro daquilo estava Murasoli Maran, que fora roteirista antes de assumir o Ministério de Comércio da Índia e havia escrito um drama de última hora em Doha. Pressionado por negociadores europeus e americanos a assinar um termo de entendimento ou passar a bola do acordo final para o nível presidencial, para aprovação, Maran contemporizou até conseguir o que queria. Indagado se fora intimidado pelo Ocidente, Maran revidou: "Não. Eu os intimidei." Foi uma declaração pública de vitória para a nova frente sulista que descerrava uma nova era na luta em torno da globalização. As potências comerciais de elite sabem disto. O principal negociador da Europa, Lamy, diz que o comércio não só "elevou-se na agenda desses governos", como também ministros de Comércio são figuras cada vez mais poderosas no mundo em desenvolvimento. Ministros de Comércio como Maran e o sul-africano Alec Erwin estão "lutando numa categoria superior ao seu peso" (numa alusão a luta de boxe), diz Lamy. Esta nova força vai obrigar a Europa e os EUA a passar mais tempo conquistando simpatias no mundo em desenvolvimento. No Fórum Econômico Mundial em Nova York na semana passada, o representante dos EUA para Comércio, Robert Zoellick, salientou a importância das novas alianças dos países em desenvolvimento no mundo pós-Doha. "É fundamental observar o papel que nações em desenvolvimento desempenham e as redes que eles estão criando", disse. Acrescentou que, para conseguir o êxito da próxima rodada, "precisamos fomentar consenso". Mas o tempo atual não é como a década de 50, em que um líder como Tito podia afirmar que falava em nome do Terceiro Mundo. Na época o movimento era mais simples, unido pela hostilidade ao regime colonial e pedindo só ampla redistribuição de riqueza. Já não é uma unidade ligada por ideologia, mas uma frente de alianças que se alteram, mudando de questão para questão. "Quando vocês se opõem a algo, podem manter-se unidos", diz o economista Jagdish Bhagwati, da Universidade Colúmbia. "Assim que vocês avançam, os interesses tendem a divergir." As cisões já aparecem. Embora países em desenvolvimento concordem geralmente que querem ter acesso a mercados mais ricos, divergem nos detalhes. A Índia, a Malásia e o Egito querem que europeus cortem subsídios agrícolas enquanto os três países continuam protegendo seus próprios agricultores. O Brasil e a África do Sul se opõem à proteção para qualquer um. A recente decisão da Europa de conceder status comercial preferencial a suas ex-colônias agradou às ex-colônias e a ninguém mais. "É uma questão de saber o que é conveniente", diz Tattanmangalam Vishwanath, conselheiro de Comércio Internacional na Indústrias Indianas. "Em conversações comerciais, não há amigos permanentes nem adversários permanentes." Tampouco as novas frentes de hostilidade já não colocam necessariamente ricos contra pobres. Em Doha, os EUA apoiaram os países em desenvolvimento que protestavam contra subsídios agrícolas na Europa. E a UE apoiou a posição contra normas antidumping nos EUA. O diretor-geral da OMC, Michael Moore, considera "salutar" este novo movimento de nações em desenvolvimento, pragmáticas e não ideológicas. Já não é tanto uma revolta contra senhores coloniais, mas uma briga por causa de coisas como cotas de aço e tarifas para banana. "O Terceiro Mundo já não existe", diz o chefe dos negociadores brasileiros para Comércio, Sérgio Amaral. "Mas existe entre os países em desenvolvimento a opinião unânime de que protecionismo é o inimigo comum." Este é um marcante distanciamento em relação à antiglobalização defendida por ativistas, de países ricos ou pobres. Os ativistas querem moderar os efeitos desestabilizantes da expansão do comércio e dos fluxos de capital sugerindo que se adote proteção, se necessário, e exigindo que multinacionais aumentem salários e melhorem condições de trabalho no mundo em desenvolvimento. Esta visão de comércio dirigido pode reduzir o ritmo da globalização, e foi ridicularizada em Davos 2000 pelo ex-presidente mexicano Ernesto Zedillo, para quem é um plano "para evitar que os países em desenvolvimento se desenvolvam". Portanto o jogo está em andamento. Ele coloca a frente emergente de países pobres contra governos ricos, que em outros tempos elaboraram as regras, mas também contra ativistas ocidentais, que antes afirmavam falar em nome daqueles. Os vencedores vão moldar a ordem global em fase de mudança.

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