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Maré protecionista

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Alguém se lembra da declaração do G-20, em Washington, no fim do ano passado? "Sublinhamos a crítica importância de rejeitarmos o protecionismo, não nos voltando para dentro em tempos de incerteza financeira... Nos próximos 12 meses não criaremos novas barreiras ao investimento ou ao comércio de bens nem novas restrições a exportações ou estímulos às exportações inconsistentes com as regras da OMC." No entanto, em meio a notícias terríveis sobre a queda da atividade e do emprego no centro da economia mundial - a despeito de todos os pacotes de estímulos -, as preocupações se voltam para o efeito perverso de uma escalada protecionista generalizada. Os episódios protecionistas se multiplicam. No Reino Unido, trabalhadores na refinaria de Lindsey, ironicamente da petroleira francesa Total, protestam contra o uso de mão-de-obra italiana e portuguesa por um provedor de serviços subcontratado. Afinal, em 2007, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, havia explicitado seu compromisso com "empregos britânicos para trabalhadores britânicos". Deve estar arrependido. Na Irlanda, parte do contingente de operários poloneses desempregado com o fim do boom imobiliário não voltou à Polônia, mas permaneceu na Irlanda, pressionando o mercado de trabalho e criando tensões difíceis de contornar. Tudo isso a despeito de os países envolvidos serem membros da União Europeia, cuja legislação garante o livre trânsito de trabalhadores. Em diversas economias em desenvolvimento, a folga disponível para aumentar tarifas sem violar os compromissos na OMC tem sido usada crescentemente. A Índia é um bom exemplo no caso do óleo de soja. O Congresso dos Estados Unidos incluiu condicionalidades do tipo buy american no pacote ora em tramitação de US$ 820 bilhões de estímulos à atividade, restringindo os gastos do pacote a produtos manufaturados nos Estados Unidos. Dadas as limitações multilaterais a aumentos tarifários, as pressões dos lobbies protecionistas tenderão naturalmente a se concentrar em instrumentos alternativos, como direitos antidumping e cláusulas relativas a conteúdo nacional. O risco de retaliações cruzadas, principalmente na Europa, é substancial. A importância dos aportes financeiros de governos para o saneamento de instituições financeiras, como instrumento para enfrentar a crise atual, abre caminho para novas formas de protecionismo "financeiro". Segundo uma ótica protecionista rudimentar, poderia parecer natural que o aporte financeiro de um governo nacional a uma instituição financeira, nas operações de salvamento que se tornaram corriqueiras nos últimos meses, devesse ter utilização restrita a aplicações financeiras que fossem de interesse de empresas ou cidadãos do país que arcou com tal ônus financeiro. É como se o mercantilismo aplicado a bens fosse transposto ao terreno das operações financeiras. Na década de 1930, a tentação não se colocou, pois, especialmente nos Estados Unidos, o resgate do setor bancário baseou-se fundamentalmente na criação do seguro de depósitos, e não em transferência direta de recursos. No Brasil, os gestores da política econômica mostraram singular inépcia ao restabelecer, por um par de dias, o licenciamento das importações. De 1931 a 1990, com fugazes interrupções, a proteção no Brasil dependeu de intervenção discricionária do governo, que podia ou não conceder licenças de importação, dependendo da prioridade que julgasse merecer cada importação específica. Tal instrumento sobreviveu à criação do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, na sigla em inglês), em 1947, porque seu uso era permitido se fossem comprovadas dificuldades relacionadas ao balanço de pagamentos. Em 1991, configurando um dos marcos do processo de liberalização, o Brasil declarou que não mais utilizaria tal instrumento. No entanto os responsáveis pela política econômica sentiram-se à vontade para, com US$ 200 bilhões de reservas, orquestrar brutal retrocesso da abertura comercial. O governo continua tendo dificuldade em aceitar que a crise já chegou ao Brasil e que pode ser muito mais longa do que sugere o otimismo de rigueur no governo. E continua dando mostras de que está mal equipado para lidar com a crise. Pressões para que sejam adotadas políticas de proteção são previsíveis: nações e indivíduos preferem tentar escapar da crise exportando-a para seus vizinhos. O problema é que o vizinho também pensa assim, e o equilíbrio final será, afinal de contas, pior para todo mundo. Comparação dos dias de hoje com a política comercial na Grande Depressão de 1929-1933 são complexas. O GATT e a OMC não existiam e, portanto, os diferentes países não estavam comprometidos, como estão hoje, a respeitar um limite máximo para suas tarifas de importação. Por isso foi possível aos Estados Unidos, em 1930, aprovar a tarifa Smoot-Hawley - que tramitava desde o final de 1928 - e aumentar a tarifa média sobre bens taxáveis de 40% para 47%. De fato, foi a reforma tarifária Fordney-McCumber, de 1922, que aumentou a tarifa dos Estados Unidos mais significativamente, embora o "timing" de Smoot-Hawley tenha sido desastroso. O governo Roosevelt, depois de namorar o bilateralismo, convenceu o Congresso a aprovar o Reciprocal Trade Agreements Act, de 1934, que delegou a política comercial ao Executivo, enfatizando o multilateralismo e a liberalização recíproca. Essa é a inspiração para que Barack Obama adote plataforma ambiciosa, provavelmente no âmbito da OMC, que garanta substância ao compromisso de que o mundo não mergulhe no retrocesso protecionista. *Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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