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Líder de mercado na Oliver Wyman, Ana Carla Abrão trabalhou no setor financeiro a maior parte de sua vida, focada em temas relacionados a controle de riscos, crédito, spread bancário, compliance e varejo, tributação e questões tributárias.

Morte anunciada

Os Estados continuaram na sua trajetória crescente de gastos com a folha de pessoal

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Por Ana Carla Abrão
Atualização:

O Tesouro Nacional divulgou o Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais com os dados fechados de 2019. Nenhuma surpresa. O excelente e extenso trabalho dá um alento ao iniciar o relatório com uma notícia positiva, um resultado primário melhor no geral. Mas a alegria dura pouco pois basta olhar no detalhe as linhas de receitas e despesas para entender que os problemas continuam todos lá. E continuarão piorando caso não se mude a rota que vimos trilhando há anos.

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Pelo lado da receita primária dos Estados chama a atenção o aumento de 7,6% na arrecadação de 2019 em relação a 2018, principalmente se comparado ao crescimento de 4% nas despesas. Em parte fruto de uma tímida recuperação econômica, em outra parte graças à maior eficiência na arrecadação – onde atuam em conjunto algumas reduções nos benefícios fiscais e um combate mais firme à sonegação. Mas há que se reconhecer também a ajuda da União que fez crescer as transferências para os entes federados em 7,7%. Foi esse significativo ganho real nas linhas de receita que garantiu a melhora do resultado primário.

As notícias positivas param aí. Os Estados continuaram, conforme esperado na ausência de uma reforma administrativa ampla, na sua trajetória crescente de gastos com a folha de pessoal que, juntamente com o crescimento de outras despesas correntes, aprofundou a tendência negativa das despesas com investimentos. Nos últimos 9 anos o crescimento médio real na despesa bruta de pessoal foi de 10,87%. Em 2019 o crescimento nominal foi de 5,1%, mantendo a tendência de aumento real. Considerando que foram poucos os Estados que concederam aumentos salariais no ano passado, o crescimento é majoritariamente explicado pelos dispositivos de promoções e progressões automáticas e incorporações de gratificações, anuênios, quinquênios, sextas partes, etc, abundantes nas diversas leis de carreiras estaduais. Chega-se assim a uma participação de 55% da despesa de pessoal na despesa total desses entes. Se olharmos um pouquinho mais atentamente, incorporando na conta os penduricalhos que alguns olhos turvos dos órgãos de controle teimam em acreditar serem gastos com custeio, chegamos próximos aos 70%. Número que continuará aumentando, apesar da proibição de aumentos salariais, mas graças ao veto parcial do presidente Bolsonaro e que passaria desapercebido não fosse o alerta de Daniel Duque, do Centro de Liderança Pública – CLP, publicado ontem pelo Valor Econômico.

Nos últimos 9 anos, o crescimento médio real na despesa bruta de pessoal dos Estados foi de 10,87%. Foto: Fábio Motta/Estadão

A combinação desse movimento crescente e contínuo de gastos de pessoal com uma renúncia fiscal que atinge em média 16,8% do total arrecadado com o ICMS nos Estados – dos quais 65% concedidos por tempo indeterminado – expõe o óbvio: a variável de ajuste nos Estados continua sendo o investimento público, sacrificando a população e promovendo a deterioração da infraestrutura Brasil a fora. Afinal, a contrapartida nessa contabilidade perversa foi a redução de 24,7% dos investimentos em relação à receita corrente líquida, consolidando ausência de capacidade financeira dos Estados e sua dependência de fontes externas. Estas, por sua vez, seriam uma solução alternativa se houvesse capacidade de endividamento, o que não é o caso para a maior parte deles.

Finalmente, o Boletim traz para reflexão alguns números interessantes (senão absurdos). Os Estados atualmente mantêm 263 empresas estatais, das quais 43% estão declaradas como dependentes. Ou seja, conforme definido em Resolução do Senado Federal, há 114 que em 2019 “receberam recursos do seu controlador destinados ao pagamento de despesas com pessoal, de custeio em geral ou de capital, excluídos, neste último caso, aqueles provenientes de aumento de participação acionária, e tenha, no exercício corrente, autorização orçamentária para recebimento de recursos financeiros com idêntica finalidade”. Essas empresas consumiram liquidamente R$ 4,8 bilhões de reais em 2019, teoricamente – considerando o que determina a Constituição Federal – exercendo atividades que atendam “aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Será mesmo?

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A publicação do Tesouro Nacional é um compêndio que se lido com a mesma atenção com que foi elaborado nos apresenta o problema, mas também as soluções. Nas entrelinhas estão implícitas aquelas que são as únicas ações capazes de evitar o colapso fiscal dos entes subnacionais: uma reforma administrativa que reconstrua as relações entre servidores e Estado e garanta melhora dos serviços públicos e redução das despesas de pessoal; uma reforma tributária ampla, que elimine as diversas distorções de um sistema regressivo e traga ganhos de eficiência econômica; um programa de privatizações que permita que o Estado brasileiro – em todos os seus níveis – esteja focado em prover serviços melhores e uma rede de proteção social eficaz. Os números de 2020 estarão confusos em função da pandemia, mas os problemas voltarão com ainda mais força em 2021 evidenciando os governadores que entenderam a mensagem – e já estão agindo – e aqueles que não. Até porque, qualquer caminho que não seja esse nos manterá na rota do colapso. E, como Santiago Nasar de Gabriel García Marques, cuja morte foi premeditada e tão amplamente anunciada, a morte dos Estados não será evitada.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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