
27 de agosto de 2020 | 04h00
O debate público é um dos alicerces da democracia. Contribui para a cidadania, para o desenho de políticas públicas e a tomada de decisões do Legislativo. Para cumprir bem o seu papel, é essencial que o debate público não apenas seja amplo, como também conte com a participação de especialistas embasados por estudos de qualidade e diagnósticos precisos.
O bom embate entre especialistas se dá na divergência técnica, e não ideológica, apontando custos e benefícios das medidas propostas. Não há política pública perfeita. Há conflitos entre objetivos de curto e médio/longo prazos, tal que uma política bem-sucedida hoje pode ter efeitos perversos adiante. Escolhas precisam ser feitas pela sociedade, pesando prós e contras. Essa é tarefa da política, e não de técnicos, a quem cabe fornecer insumos para a tomada de decisão.
O Brasil não está bem nesse quesito, faltando qualidade técnica ao debate econômico. Predominam no País centros de pesquisa pouco conectados com a academia internacional, esta debruçada na busca de evidências empíricas e no rigor do arcabouço teórico moderno. Os centros que seguem a linhagem acadêmica preponderante no exterior, chamados aqui (equivocadamente) de liberais – em contraposição aos chamados desenvolvimentistas – são a minoria. Enquanto lá fora as divergências entre os economistas são mais técnicas, de forma que visões heterodoxas (alternativas) hoje eventualmente se tornam ortodoxas (consolidadas) posteriormente, ao sobreviverem ao escrutínio acadêmico, aqui é como se liberais e desenvolvimentistas falassem línguas diferentes, pela falta de convergência metodológica.
Historicamente, prevalece no debate brasileiro a visão dos desenvolvimentistas, moldando boa parte da agenda política; os liberais só são chamados quando bate a crise fiscal.
Os desenvolvimentistas defendem que o crescimento econômico em países atrasados, como o Brasil, requer a liderança estatal. Focam nos instrumentos de curto prazo, como se o longo prazo se resumisse à soma de vários curtos prazos, desconsiderando problemas da dinâmica econômica. Assim, costumam negligenciar questões como disciplina fiscal, eficácia de políticas públicas e eficiência econômica. Há um quê de paternalismo também. É comum a defesa de direitos absolutos, sem a análise dos seus efeitos colaterais sobre a economia e o bem-estar social. Foi essa visão que prevaleceu na Assembleia Constituinte.
O fato de importantes economistas que introduziram a linha de pesquisa empírica no Brasil terem ocupado cargos técnicos na ditadura militar produziu preconceitos e seu isolamento. As expressões “ortodoxo” e “neoliberal” viraram ofensa, enquanto se difundia que a “teoria econômica aqui não funciona”.
A consequência disso é que reformas só avançam quando o quadro é tão grave que a classe política é levada a agir. Foi assim na reforma da Previdência, aprovada com 20 anos de atraso e sob protestos de desenvolvimentistas.
O principal debate econômico atual no País é sobre a necessidade ou não de retomada da disciplina fiscal, cumprindo a regra do teto, findo o período de calamidade pública. A inflação e juros baixos reduzem o apelo para reformas fiscais, e o pêndulo pende para os desenvolvimentistas, cujas ideias contam com o apoio de Bolsonaro.
Os manifestos de economistas a favor e contra o teto de gastos dizem muito sobre as deficiências do debate econômico. Não é o caso de repetir os argumentos apresentados por ambos os lados, mas chama a atenção a maior qualidade analítica do primeiro manifesto, mais técnico e sem ataques a quem pensa diferente, em contraste com o tom mais beligerante do segundo, que acusa quem defende o teto de “impatriótico”. Coincidência ou não, Bolsonaro pede patriotismo ao mercado financeiro.
A melhor forma de especialistas cumprirem seu papel para o desenvolvimento do País é a qualidade da pesquisa econômica. Isso sim é espírito público.
* CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP
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