Publicidade

‘Não é à toa que o Brasil virou pária na questão ambiental’, afirma Giannetti

Setor caiu nas mãos da ala ‘obscurantista’ do governo Jair Bolsonaro, diz economista, que participou de série de entrevistas ao vivo do ‘Estadão’

Foto do author Fernando Scheller
Por Fernando Scheller e Monica Scaramuzzo
Atualização:

O economista Eduardo Giannetti acredita que o Brasil virou “pária” internacional na questão ambiental porque o tema caiu – ao lado de setores como cultura e relações internacionais – nas mãos da ala “obscurantista” do governo Jair Bolsonaro. “O presidente acredita que, ao fazer isso, está conquistando o apoio de certos grupos que serão importantes para seu projeto político. É uma mistura de cálculo político com desinformação”, afirmou, durante a série de entrevistas Economia na Quarentena, nesta terça-feira, 28. 

'Não tem desculpa para terminar dois anos de governo sem sequer ter apresentado uma proposta de reforma tributária', diz Giannetti Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

PUBLICIDADE

 

Giannetti, que é autor de livros como Trópicos Utópicos e Valor do Amanhã, também falou da “desigualdade crônica e estrutural” da sociedade brasileira, da necessidade de retomada do ajuste fiscal e de investimentos em setores básicos para a melhora da qualidade de vida da população, como saneamento, saúde, educação e segurança.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Quando falamos em crise econômica no Brasil, não existe um cenário mais amplo a ser analisado, relacionado a respeito, educação e diálogo?

Se tem uma coisa que não falta no Brasil é crise. Vivemos crise de diferentes temporalidades e gravidades. Temos uma crise de saúde, na qual o Brasil não está, mas o quadro aqui se tornou pior do que precisava ser porque temos uma crise política. E há uma crise econômica. O Brasil mal tinha saído de um período de recessão seguido por um de estagnação quando foi pego pela necessidade de conter o impacto imediato do coronavírus. Temos uma crise crônica de saúde, com epidemias de dengue, de zika. São 35 milhões de brasileiros sem água encanada, 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgoto. É a crise estrutural brasileira, que é de desigualdade crônica e estrutural.

O Brasil vive diferentes crises ao mesmo tempo. A gente tem dificuldades em definir prioridade para sair delas?

Publicidade

Eu prefiro falar de falta de clareza do que sobre a noção de projeto, como se alguém pudesse desenhar o que deve ser o Brasil em 20 ou 30 anos. Mas nós temos de ter clareza em relação ao que é absolutamente prioritário. Por exemplo, saneamento básico. O Estado arrecada 33% da renda nacional – contando o déficit de 6% do PIB, 39% do que o País gera passa pelo setor público. E o que temos? Falta de saneamento básico, ensino fundamental deplorável, saúde pública deficiente e transporte público vexaminoso. Como pode um país de renda média onde o país concentra 39% da renda não consegue dar conta dessas necessidades. No caso do saneamento, é algo que o mundo desenvolvido conseguiu resolver no século 19. Ou seja: tem alguma coisa profundamente errada nas finanças públicas brasileiras.

Depois do auxílio de R$ 600, a popularidade do governo Bolsonaro melhorou. Com a aproximação das eleições, o ajuste fiscal corre o risco de ficar para trás?

Um grande risco que corremos é de uma guinada populista fiscal na fase final do governo Bolsonaro. Ele já fez uma guinada política, se jogando nos braços do Centrão, depois de ter prometido que não faria isso na campanha. Quando a questão da reeleição estiver muito acesa, corremos esse risco. Isso pode levar a dívida publica a uma tendência de crescimento e levar a uma insolvência do Estado. Eu ainda acredito que a presença do ministro da Economia, Paulo Guedes, serve de anteparo a essa ameaça. Se essa equipe siar, como aconteceu com o Sergio Moro no Ministério da Justiça, estamos em maus lençóis. Podemos ter uma recaída no pior tipo de populismo – não de esquerda, mas de direita.

 

Importantes nomes do Ministério da Economia deixaram o governo. Isso traz instabilidade?

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

A gente começa a ficar com a pulga atrás da orelha. São pessoas que tinham compromisso com a ancoragem fiscal no Brasil. Depois do aumento expressivo do gasto público durante o governo Dilma Rousseff, o Brasil vinha tentando voltar a ter uma âncora fiscal, o que permite um horizonte que permite dizer que o País não vai quebrar. Perdemos esse caminho pela necessidade de conter o dano econômico e social da covid-19. No pós-pandemia, se não recuperarmos o cenário de controle fiscal, voltamos para a UTI.

Com a justificativa de controlar as contas públicas, Paulo Guedes propõe uma reforma com aumento de carga tributária. O que o sr. acha disso?

A nossa carga tributária já foi muito além do que seria razoável para um país de renda média. Acho espantoso que o Estado brasileiro não tenha recursos para investir e para reduzir a desigualdade cavalar e estrutural da sociedade brasileira. Não defendo aumento da carga tributária. Acho que nós temos de repensar o pacto federativo. O dinheiro público tem de ser gasto o mais perto possível de onde ele é arrecadado, nos Estados e municípios. As coisas mais relevantes para o cidadão devem ser decididas e financiadas com impostos locais. Deve passar por Brasília o que é distribuição inter-regional, para compensar as desigualdades entre os Estados brasileiros.

Publicidade

O Brasil também vive uma crise ambiental. Dá para melhorar a imagem do Brasil no exterior em relação a este tema?

Não tem dúvida que é possível melhorar a imagem do Brasil. Mas isso não será feito com discurso e nem com propaganda. Isso será feito com resultados. Se o Brasil conseguir reduzir significativamente as queimadas na Amazônia, mostrar que está punindo quem desrespeita a lei, isso nos trará o mínimo de respeitabilidade na questão ambiental. Dentro do arranjo dos grupos em que foi dividido o governo Bolsonaro, as áreas de meio ambiente, educação, cultura e relações internacionais caíram nas mãos do que há de mais obscurantista, que chamo núcleo familiar-astrológico. Isso sinalizou para quem quer desrespeitar a lei e ocupar ilegalmente terras, desmatando-as, que liberou geral. Não é à toa que o Brasil virou um pária internacional. Estamos perdendo recursos a fundo perdido.

Essa política ambiental pode ser justificada só pela ignorância, ou há interesses por trás dela?

Acredito que é uma mistura de obscurantismo ignorante e oportunismo político. O presidente acredita que, ao fazer isso, ele está conquistando o apoio de certos grupos que serão importantes para seu projeto político. É uma mistura de cálculo político com desinformação. Em 30 anos como deputado federal, Jair Bolsonaro apresentou dois projetos que se transformaram em lei. Um deles foi a pílula do câncer. O Brasil elegeu para a Presidência da República uma pessoa que acredita na pílula do câncer! É um vexame. Mas é o Brasil, essa mistura explosiva de oportunismo com ignorância. Nós temos um presidente intelectualmente despreparado, eticamente imaturo e politicamente oportunista.

O sr. acha que o vice-presidente Hamilton Mourão é capaz de conduzir essa guinada na área ambiental?

Eu tenho mais esperança que o Mourão atue de maneira firme e racional do que no presidente da República. Agora ele vai ter de trabalhar e ter compromisso na ponta. Tem de dar condições ao Ibama, aos órgãos de controle e não tentar ocultar realidades. Na verdade, é simples: nós estamos falando de cumprir a lei que já existe no Brasil sobre o tema.

O problema da distribuição de renda esbarra na cultura de desigualdade no Brasil, que cria “castas” de cidadãos que são considerados mais importantes do que outros?

Publicidade

Tenho a sensação recorrente que o Brasil que ainda não passou pelo equivalente da Revolução Francesa: a igualdade de todos perante a lei. Ainda estamos em um país em que os governantes e as autoridades se consideram uma casta superior a todos e agem como se a sociedade existisse para servi-los – como se fossem súditos. Instituições como o foro privilegiado são típicos de um antigo regime. O episódio do desembargador em Santos é uma cena digna da França de Versalhes. A nossa Versalhes é Brasília. Será que termos de derrubar a Bastilha para colocar o Estado brasileiro a serviço da população? Como cidadão, torço para que não seja necessária uma revolução – porque esse tipo de ruptura a gente sabe como começa, mas não como termina.