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Não vai funcionar

A política fiscal tornou-se elemento desestabilizador da economia brasileira, comprometendo a eficácia da política econômica

Por Zeina Latif
Atualização:
Polarização do debate político torna mais difícil obter consensos sobre a agenda econômica Foto: ANDRE DUSEK|AE

O governo busca formas de atenuar o atual quadro recessivo. Para muitos, a preocupação com o ambiente político pode levar o governo a ceder ainda mais às demandas dos grupos de interesse por proteções e benefícios, bem como a buscar atalhos para estimular a retomada da atividade. Não se persegue a necessária agenda de ajuste fiscal estrutural, ainda que a discussão sobre reforma da previdência esteja de volta, mas sim de um retorno à desgastada agenda de medidas utilizadas nos últimos anos. A intenção seria flexibilizar o ajuste fiscal, já tão comprometido e frágil, aumentar o crédito direcionado (política para-fiscal) e criar novos estímulos a setores selecionados. O risco, porém, é de se comprometer ainda mais as contas públicas e, assim, a possibilidade de saída da crise e a retomada do crescimento econômico.

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Do lado fiscal, algumas intenções já foram anunciadas, como a negociação da dívida de Estados, o ajuste do salário mínimo maior do que o embutido no Orçamento, o ajuste mais robusto do funcionalismo e a incorporação das gratificações no cálculo das aposentadorias no setor público. Do lado para-fiscal, o destaque fica para o uso de recursos das chamadas “pedaladas”, que foram saldadas com mecanismos que merecem maiores explicações, para concessão de crédito direcionado. Como há restrições prudenciais para aumento do crédito de bancos públicos, o governo busca meios de viabilizar o uso desses recursos.

O risco fiscal aumenta, seja pelo impacto direto nos indicadores fiscais, seja pelo risco de longo prazo associado à saúde dos bancos públicos e de fundos como o FGTS. Assim, sanciona-se o já elevado risco país, embutido nos preços de ativos brasileiros, que podem não ter atingido o teto. O risco Brasil (CDS de 5 anos próximo de 500 bps) está próximo do risco de países com desordem social e conflito, como Paquistão e Egito, e bem acima do risco de Rússia (em torno de 330 ante 600 bp há um ano), que enfrenta risco geopolítico e as consequências da queda do preço de petróleo.

Ocorre que há grande possibilidade de a política do governo se provar contraproducente, mesmo no curto prazo, em função da piora da percepção de risco, que afeta a confiança dos agentes econômicos, bem como os preços de ativos, com contágio sobre o lado real da economia.

No Brasil, é bastante difundida a crença de que a expansão fiscal sempre resulta em maior crescimento, o que tem sido particularmente difundido nos últimos anos. Tratam as políticas monetária e fiscal isoladamente, como se fossem instrumentos independentes. Não se avaliam as consequências da política fiscal sobre a inflação, a solvência da dívida e a confiança dos agentes, e portanto a sua efetiva capacidade de gerar estímulos ao setor produtivo.

Desconsidera-se a possibilidade de uma política fiscal disfuncional. Mas o fato é que o efeito do impulso fiscal sobre a demanda agregada não é algo garantido. Depende da percepção dos investidores quanto à solvência da dívida pública. Em algum momento, os investidores podem duvidar da vontade ou da capacidade do governo de honrar o serviço da dívida, obrigando-o a pagar juros mais elevados para financiar o déficit público, o que acaba drenando o investimento privado. Outra manifestação é a inflação elevada, uma forma indireta de financiamento do governo, mas que também tem efeito negativo sobre os investimentos. Em outras palavras, política fiscal se torna pouco efetiva caso resulte em desajuste macroeconômico e contração da demanda privada (investimentos e consumo). No limite, perde-se a política fiscal como instrumento anticíclico. Sua eficácia também é afetada pela dinâmica da taxa de câmbio, que tende a se valorizar em termos reais com a expansão fiscal, prejudicando o desempenho das exportações líquidas.

Vizinhos. Para que a política fiscal possa cumprir sua função anticíclica ou seu papel estabilizador é necessário que ela seja sustentável, e isso só é possível quando há confiança dos agentes quanto à dinâmica da dívida. Importante que se diga que, nos modelos keynesianos, a política fiscal deve ser anticíclica, mas não a ponto de promover o aumento insustentável da dívida como proporção do PIB. Essa lição poderia ser aprendida com os nossos vizinhos com dívida pública em torno de 30% do PIB, como Chile, Peru e Colômbia, que têm adotado política fiscal anticíclica bem sucedida.

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A política fiscal pode até ser contraproducente quando produz um tal grau de instabilidade macroeconômica que o impulso fiscal acaba sendo mais do que compensado por queda dos gastos privados. Nossa suspeita é que o Brasil já pode estar nessa situação.

Seria melhor nem tentar fazer as políticas de estímulo, que poderão ser inócuas ou perversas, mesmo no curto prazo, não trazendo o desejado alívio para os próximos meses potencialmente tumultuados na política e, pior, comprometendo ainda mais o restante do mandato de Dilma.

É difícil analisar de forma ampla e precisa o efeito da política fiscal e para-fiscal na economia. São muitos instrumentos do lado das despesas e das receitas com diferentes impactos na economia, sendo que entre o anúncio e a implementação da medida pode haver reações dos agentes econômicos que afetam a eficácia da mesma. Além disso, diferentemente da política monetária, que afeta o curto prazo, a política fiscal tem efeitos distribuídos ao longo do tempo, nem sempre na mesma direção, enquanto estabilizadores automáticos do PIB (como a queda da arrecadação de impostos durante recessões) dificultam a estimação dos seus efeitos.

Efeitos do impulso fiscal. Neste artigo, apresento um modelo simplificado desenvolvido por Tatiana Pinheiro que busca estimar o efeito do impulso fiscal do governo federal sobre a demanda privada. Ficam de fora, portanto, o impulso de entes subnacionais e a política para-fiscal, por falta de dados suficientes. Trata-se de um modelo econométrico (VAR) que associada a variação da demanda privada ao impulso fiscal (superávit primário estrutural), taxa real de juros (ex-ante), taxa real efetiva de câmbio e atividade econômica global.

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O modelo foi estimado para vários intervalos temporais, estendendo-se o final da amostra a cada etapa, com o intuito de observar a evolução do coeficiente que mede o poder do impulso fiscal para estimular a demanda. O período compreendido foi de 2000 a 2015 (3º trimestre).

O exercício revelou que a política fiscal afeta a demanda privada num intervalo de 3 a 6 trimestres, o que significa que o grosso da política fiscal em um determinado ano afeta a economia apenas no ano seguinte. O principal resultado é que a política fiscal perdeu a eficácia a cada ano (coeficiente em queda), com maior redução a partir de 2014, sendo nula para o período 2000-15. Os resultados indicam que a política fiscal pode ter se tornado contraproducente a partir de 2014. Assim, os excessos fiscais de 2013 e 2014 ajudam a explicar o quadro recessivo iniciado em 2014 e seriamente agravado em 2015.

Essa estimativa corrobora a avaliação do ex-ministro Joaquim Levy de que o ajuste fiscal em 2015 seria positivo para o crescimento econômico, e não contracionista como se imagina. A “arrumação” da macroeconomia seria positiva para o crescimento, em decorrência de uma trajetória de sustentabilidade da dívida pública e pela sua contribuição no combate à inflação.

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A experiência de 2014 deveria ter deixado lições. Naquele ano, o governo já reconhecia a necessidade de resgatar a disciplina fiscal após anos de excessos. No entanto, a política fiscal manteve-se claramente expansionista em 2014, na contramão do rumo da política fiscal prometida pelo ministro Mantega. A promessa de um superávit primário de 1,9% do PIB se revelou em déficit de 0,6% (sem contar as “pedaladas”), o primeiro déficit desde 1997. A esperança era evitar a recessão naquele ano. Pelos resultados, não funcionou e deixou terrível herança para 2015.

Inconsistência temporal. O País se beneficiaria de um ajuste fiscal estrutural que interrompesse o aumento de gastos. Fazer rápido resgataria a reputação e o risco percebido de que as metas fiscais futuras não sejam críveis. O ajuste gradual sofre com o problema de baixa credibilidade do compromisso (inconsistência temporal, no jargão dos economistas). No entanto, fazer um rápido ajuste na atual conjuntura parece virtualmente impossível.

Neste contexto de dificuldades políticas, seria muito importante retomar a agenda de aprimoramento institucional da gestão da política fiscal para fortalecer a credibilidade da política pública e torná-la menos vulnerável a pressão de grupos de interesse. Diversos pontos importantes da Lei de Responsabilidade Fiscal ainda não foram implementados e a criatividade dos últimos anos indicam a necessidade de novas medidas.

A União Europeia, por exemplo, passou por ciclo de expansão e austeridade fiscal, e agora discute avanços institucionais para evitar a repetição de erros. Cada país membro deverá criar um conselho fiscal com mandato para funcionar como assessor independente, com produção de trabalho empírico e subsídios para a formulação da política fiscal.

A política fiscal tornou-se elemento desestabilizador da economia brasileira, comprometendo a eficácia da política econômica. Responsabilidade na política econômica requer cautela no uso de instrumentos em momentos de grave incerteza.

Enquanto isso, a polarização do debate político torna mais difícil obter consensos sobre a agenda econômica de longo prazo. Os problemas devem ser enfrentados. Já temos custos em demasia pela escolha de atalhos oportunistas e insustentáveis.