19 de julho de 2021 | 10h25
A ruptura provocada pela escassez de chips atingiu a indústria automotiva em seus principais países produtores de forma indiscriminada, gerando perdas da ordem de US$ 100 bilhões, segundo estimativas da consultoria KPMG. Em volume, ao menos 5 milhões de veículos deixarão de ser produzidos neste ano, calcula a Boston Consulting Group (BCG). No Brasil, estima-se que até 120 mil unidades já tenham deixado de ser fabricadas.
No quadro de alta seletividade na produção, dada a menor disponibilidade de materiais à disposição das fábricas, o Brasil tem como desvantagem o fato de seu parque produtivo depender de modelos que não estão, neste momento, na lista de prioridades e devem ser os últimos a voltar a uma produção sem restrições.
Na comparação com alguns dos dez maiores fabricantes automotivos do mundo, a defasagem da produção de veículos brasileira aos volumes de antes da pandemia não mostrou até agora grande descolamento em relação à realidade de países como Alemanha, Espanha e México.
Por outro lado, os planos de produção das montadoras na América do Sul, onde o Brasil é o principal produtor, vêm sendo mais comprometidos do que os de fabricantes da Europa. Esse é um dos indícios extraídos do estudo da BCG usado como base na estimativa feita recentemente pela Anfavea, associação da indústria nacional de veículos, de que o Brasil já deixou de produzir neste ano entre 100 mil e 120 mil veículos por falta de componentes eletrônicos.
Segundo estima a BCG com base em informações do segundo trimestre, quando a crise dos semicondutores se aprofundou, a falta de eletrônicos está impedindo 14% da programação feita por montadoras sul-americanas. Na Europa, as fábricas deixam de produzir 9% do volume planejado. Só na América do Norte, onde as paralisações de montadoras também tornaram-se frequentes, o impacto é maior do que aqui: 20% da produção prevista.
Na avaliação do consultor Paulo Cardamone, da Bright Consulting, além de os próprios fornecedores de semicondutores privilegiarem a indústria de tecnologia, em detrimento das montadoras de automóveis - colocando, assim, um primeiro nível de seleção na disputa entre diferentes setores do mundo inteiro por chips -, a cadeia automotiva direciona as matérias-primas à sua disposição para a produção de produtos mais rentáveis.
Nessa dinâmica, conclui Cardamone, modelos populares, em geral os compactos, vão para o fim da fila dentro de uma indústria que, por responder por não mais do que 10% do consumo mundial de semicondutores, não se apresenta como um cliente prioritário da indústria de chips. "Não só no Brasil, mas em todo o mundo, esse tipo de produto será o último a voltar", prevê o consultor.
"É certo que a indústria de semicondutores privilegia os aparelhos eletrônicos, que vêm ganhando consumo, especialmente na pandemia, a margens mais altas, ao invés das montadoras de automóveis, que são conhecidas por apertar fornecedores. A indústria automotiva é a última na fila, e dentro dela é uma decisão natural privilegiar também os veículos de maior rentabilidade", acrescenta.
Segundo Besaliel Botelho, presidente da Bosch, grupo que fornece sistemas eletrônicos para as montadoras, a cadeia de suprimentos, numa situação de escassez como a atual, costuma respeitar um principio de proporcionalidade na distribuição das peças. Ou seja, faz um fornecimento coerente com o peso de cada cliente na carteira de encomendas, evitando assim que apenas um ou poucos deles fiquem com todo o volume disponível.
No entanto, pondera Botelho, a escolha de quais carros serão produzidos com os insumos disponíveis é uma decisão individual das montadoras. "Estamos numa situação em que o cobertor ficou mais curto pra todo mundo", comenta o presidente da Bosch.
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19 de julho de 2021 | 10h25
A escolha das montadoras de direcionar a pouca disponibilidade de materiais para a produção de automóveis mais caros virou de ponta-cabeça a pirâmide do mercado de veículos novos no Brasil. Base dos melhores anos das vendas de automóveis, os carros populares são hoje uma parcela mínima da produção da indústria, entregando o protagonismo que tiveram no passado a modelos mais caros, em especial os utilitários esportivos.
De acordo com levantamento feito para o Estadão/Broadcast pela consultoria Jato Dynamics, se até três anos atrás 60% dos carros vendidos no País custavam menos R$ 70 mil e 40% mais do que esse valor, hoje a situação se inverteu completamente, com 68% acima e 32% abaixo dessa marca.
A mudança de portfólio das montadoras vem ocorrendo em intensidade há quatro anos, graças à introdução de tecnologias exigidas por regulação somada à reorientação das montadoras de, ao invés de volume, buscar o reequilíbrio financeiro com produtos voltados ao público que pode pagar por maior conforto, espaço, conectividade, segurança e eficiência dos automóveis.
A pandemia introduziu um novo elemento à equação, por obrigar a indústria a ser ainda mais seletiva no que produzir com um volume menor, e também mais caro, de peças à disposição.
Conforme o estudo da Jato, feito com base nos volumes de janeiro a junho deste ano, carros que custam menos de R$ 50 mil, os mais baratos do mercado e que se resumem a subcompactos, representam agora meros 3% das vendas.
A grande novidade, porém, está na menor densidade do segmento formado por carros de R$ 50 mil a R$ 70 mil, ocupado por grande parte dos modelos de entrada das montadoras após os seguidos reajustes nas tabelas das concessionárias. Hoje, representa 29% das vendas, menos do que os 36% do ano passado.
É justamente nas duas faixas acima que estão posicionados modelos produzidos em fábricas que pararam por períodos mais prolongados desde o início da crise de abastecimento de peças, agravada nos últimos meses pela falta de componentes eletrônicos no mundo inteiro. Entre elas, a fábrica do Onix - em tempos normais, o modelo mais popular do Brasil -, que está parada desde março.
Neste mês, foi interrompida, por alguns dias ao mesmo tempo, a produção tanto do Gol quanto do HB20 em fábricas da Volkswagen e da Hyundai, no interior paulista. A Fiat, marca líder em vendas no ano, vem alternando férias a grupos de mil trabalhadores em Betim (MG), onde são montados modelos como Uno e Argo, além do Mobi, o subcompacto que disputa com o Renault Kwid o posto de carro mais barato do Brasil.
"A falta de semicondutores está afetando o segmento de entrada porque o foco da indústria está na rentabilidade. Os preços estão, na média, muito altos", explica o diretor de desenvolvimento de negócios da Jato, Milad Kalume Neto.
O preço médio dos carros vendidos no Brasil gira hoje na faixa de R$ 90 mil a R$ 95 mil. Em 2012, no auge das vendas, os brasileiros compravam carros que custavam em média R$ 63 mil, em valores, estimados pela Bright Consulting, já corrigidos pela inflação acumulada desde aquela época.
Modelos definidos pela Jato Dynamics como carros populares, caso de Onix, Gol, Mobi e Fox, representaram menos de 2% das vendas da indústria nos últimos três meses. Por outro lado, os SUVs, como são conhecidos os utilitários esportivos pela sigla em inglês, responsáveis por 32% das vendas no recorte do segundo trimestre, já formam, junto com as picapes (18%), metade do mercado.
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19 de julho de 2021 | 10h25
Embora investimentos pesados estejam sendo feitos para ampliar a produção mundial de chips, a concorrência acirrada, de diferentes setores industriais, vista atualmente por esse componente pode ser apenas um aperitivo da tendência que se desenha para o futuro.
O mundo vai precisar cada vez mais de semicondutores para a transição de redes de comunicação móvel ao chamado 5G, em paralelo à digitalização da economia, acelerada durante a pandemia, e ao avanço da eletrônica nos mais diversos bens de consumo, incluindo o carro elétrico, que usa o dobro de chips.
Por ocorrer ao mesmo tempo em várias frentes, a transformação tecnológica coloca diante da indústria de veículos a necessidade de reavaliar o seu modelo de negócio. Embora consuma apenas 10% dos semicondutores vendidos no mundo, o setor vai perder US$ 100 bilhões por não poder fabricar carros em função da falta de eletrônicos, estima a consultoria KPMG.
Para Ricardo Bacellar, responsável por análises sobre a indústria na KPMG, é o momento de se considerar um passo para trás na evolução do padrão tecnológico dos veículos comercializados no Brasil, seja para reduzir a dependência dos escassos circuitos eletrônicos, seja para viabilizar produtos mais compatíveis com a renda do consumidor.
"O brasileiro tem interesse em comprar veículos, mas os produtos de entrada se descolaram nos últimos anos de sua capacidade financeira. O resultado é que esse consumidor está correndo para o mercado de carros usados", comenta Bacellar, para quem a investida em carros mais básicos, dispensando equipamentos não obrigatórios, como centrais de multimídia e câmbio automático, reaproximaria as montadoras dos consumidores de menor renda.
É, contudo, uma ideia já descartada publicamente pela General Motors (GM). Em recente comunicado, o presidente da montadora na América do Sul, Carlos Zarlenga, assegurou que, apesar da escassez de suprimentos, a GM não vai dar foco a versões básicas do Onix, em que pese o impacto da decisão na produção.
De acordo com Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, associação que representa a indústria nacional de veículos, a "briga" com as matrizes por envio de itens como módulos, sensores e microprocessadores tornou-se uma rotina nas montadoras. "Brigamos para ter a maior fatia possível. Faz parte do dia a dia porque existe o risco de ficar com um pedaço menor do bolo."
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