
07 de agosto de 2015 | 21h00
Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, o Exército chinês de 3,7 milhões de homens, comandado pelo generalíssimo Chiang Kai-shek, encontrava-se extremamente enfraquecido pela luta contra os japoneses e o levante comunista. Mas ainda conseguia se impor aos comunistas dada a sua superioridade numérica e a dos seus armamentos. Quando as forças soviéticas se retiraram da Mandchúria, no nordeste do país, que o general tomara dos japoneses, as forças de Chiang avançaram dispostas a reconquistar o território. Os comunistas chineses da região, que até então haviam recebido o apoio da Rússia, foram esmagados sob o ataque violento.
Mas, em 1946, os americanos, determinados a impedir uma guerra civil entre Chiang e o líder comunista, Mao Zedong, persuadiram Chiang a interromper os combates. Aquele momento poderia ter mudado a história: a pausa de duas semanas permitiu a Mao reorganizar suas forças com a ajuda soviética. Quando a trégua foi quebrada, Chiang perdeu a Mandchúria e a guerra civil. Os americanos - particularmente a direita - arrependeram-se amargamente por muitos anos. E se a vitória de Mao tivesse sido evitada?
A ascensão espetacular da China, nos últimos 30 anos, contribuiu para os comunistas contestarem as sugestões de que o país estaria em melhores condições sem Mao. E talvez tenha sido isto mesmo. O Exército de Chiang fugiu para a próspera ilha de Taiwan. A China de Mao precipitou na ruína econômica antes que Deng Xiaoping começasse a mudar seus rumos no final dos anos 70. Se a economia chinesa tivesse crescido ao mesmo ritmo da de Taiwan desde 1950, em 2010 seu Produto Interno Bruto (PIB) teria sido 42% maior do que foi na realidade. Em outras palavras, talvez conseguisse o milagre do seu crescimento, mais o equivalente a uma economia aproximadamente do tamanho da França.
Chiang permaneceria à frente de um governo corrupto, autocrático, com uma polícia secreta brutal.
Seu Partido Nacionalista, o Kuomintang (KMT), se defrontaria com o descontentamento dos pobres das zonas rurais que constituíam o esteio das forças de Mao. Entretanto, o autoritarismo de Chiang talvez fosse mais brando que o de Mao. Milhões de proprietários agrícolas não teriam sido assassinados por meras razões ideológicas, nem teria havido o Grande Salto para Frente, no final dos anos 50, cuja principal consequência foi uma carestia que matou dezenas de milhões de pessoas.
Ao contrário de Mao, ele não teria eliminado a empresa privada e obrigado os camponeses a ceder suas terras às Comunas Populares, política que exacerbou a carestia e que - embora muito tempo depois de ter sido oficialmente repudiada - ainda prejudica o desenvolvimento do interior do país. Tampouco Chiang teria mergulhado o país no caos da Revolução Cultural dos anos 60 e 70, durante a qual mais milhões de pessoas foram mortas ou perseguidas.
Sob o governo de Chiang, a China não teria de esperar 30 anos para se tornar parte da economia global. Certamente, Chiang teria tentado proteger os mercados chineses da concorrência externa, como a economia de Taiwan e as asiáticas fizeram durante períodos de rápida decolagem. Mas ele teria abrandado mais rapidamente estas restrições. Taiwan pôde aderir à Organização Mundial do Comércio (OMC) muito antes da China, que ingressou em 2001.
A Ásia imaginada. O mapa estratégico da Ásia teria sido muito diferente se Chiang ganhasse a guerra civil. Ele não teria apoiado a invasão do Sul pela Coreia do Norte, em 1950. Sem o apoio da China, Kim Il Sung provavelmente não teria conseguido a ajuda de Stalin para tal aventura. Chiang não teria tido um problema como Taiwan. Os rebeldes de Mao jamais puderam contar com o apoio da ilha.
Mas Chiang era um ardente nacionalista. Seu relacionamento com o Japão teria sido perigoso. Milhões de chineses foram mortos durante a ocupação japonesa, e o KMT, ao contrário das forças de Mao, sofreram as piores baixas. As animosidades entre a China e o Japão, que Mao não pareceu disposto a considerar importantes, poderiam ter ameaçado a segurança do Leste asiático muito antes de se tornarem uma causa de tensões regionais, na década de 90. Com o domínio de Taiwan e do continente, Chiang deteria o controle dos corredores de tráfego marítimo dos quais depende a economia do Japão. As restrições impostas pelos Estados Unidos à região talvez ainda fossem necessárias.
A Guerra Fria também poderia ter-se intensificado se Chiang não aceitasse o controle da União Soviética sobre a Mongólia. Nos anos 60, sob Mao, breves conflitos irromperam na fronteira sino-soviética, conflitos que poderiam ter-se agravado tornando-se mais sangrento sob Chiang. Doutrinada pelo KMT, a sociedade chinesa, que estava convencida de que a Mongólia pertencia à China, poderia ter exigido que o seu governo afirmasse sua reivindicação mais energicamente quando a ameaça soviética acabou.
Mas até então talvez a China já tivesse se tornado um país mais liberal do ponto de vista político. Movimentos em prol da democracia teriam sido contidos pelo temor do secessionismo, principalmente no Tibete e em outras regiões habitadas por minorias étnicas (muitos taiwaneses teriam se irritado com o governo do KMT, como de fato demonstraram antes mesmo de Chiang fugir para a ilha). Mas uma classe média teria surgido muito antes do que ocorreu sob o regime comunista.
Apesar do governo autocrático do KMT de Chiang, a China teria continuado aliada dos Estados Unidos. A Ásia portanto não estaria dividida como está hoje por uma luta pela supremacia entre EUA e China. Talvez até o Japão aprendesse a conviver com sua poderosa e rica vizinha.
A tensão que atualmente assola a Ásia diz respeito, em grande parte, à natureza do Partido Comunista da China. Os países vizinhos estão preocupados com o comportamento do partido, que manobra secretamente, de maneira arbitrária e às vezes brutal (pelo menos internamente). Mas todos temem o que poderá acontecer se o partido seguir o caminho do KMT e adotar o liberalismo. Nas eleições de 2000, o KMT foi derrotado em Taiwan, mas retornou em 2008. É provável que no próximo ano volte a ser derrotado.
Na Ásia são poucos os que acreditam que o Partido Comunista possa aceitar em algum momento do futuro os imprevistos da política democrática. Seu eventual fim poderá causar tumultos sangrentos; até mesmo um retorno ao caos dos anos 40. É possível que o restante da Ásia prefira o demônio que já conhece. / Tradução de Anna Capovilla
Encontrou algum erro? Entre em contato
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.