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Novo Auxílio Brasil tem a marca da incerteza

Falta de reajuste e possibilidade de filas são as principais críticas dos especialistas, que ainda veem risco da volta do clientelismo político na gestão dos programas de transferência de renda

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Por Adriana Fernandes
Atualização:

Embalado sob medida para o projeto de reeleição do presidente Jair Bolsonaro, o Auxílio Brasil, novo programa social com benefício mínimo de R$ 400 aos mais pobres, nasceu com a marca da incerteza e o risco de novas mudanças a partir de 2023, no primeiro ano do próximo governo. Entre o auxílio emergencial, concedido durante a pandemia da covid-19, e o Auxílio Brasil, o substituto do Bolsa Família, o governo terá repassado aos mais pobres e informais R$ 453 bilhões no período de três anos (2020 a 2022) – sendo R$ 89 bilhões previstos para o ano que vem.

Apesar do tamanho dessa transferência de recursos à população mais pobre, que perdeu renda na pandemia e não consegue emprego, há uma incógnita sobre a capacidade de o novo programa reduzir a pobreza. Pesquisadores da área social apontam que o novo programa permanece com as mesmas lacunas estruturais: a falta de reajuste e possibilidade de as filas continuarem.

Uma das críticas ao Auxílio Brasil é que não garante o prometido fim das filas Foto: Felipe Rau/Estadão

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Entre economistas, a preocupação é outra: a sobrecarga das contas públicas, com o aumento das despesas com o Auxílio, que poderia ser menor e ter mais foco e mesmo impacto sobre a pobreza. Com estrutura mais complexa do que o Bolsa Família e nove tipos diferentes de benefícios, o repasse pode acabar não sendo efetivo.

Ao optar por um piso de R$ 400 no ano eleitoral, o presidente pode ter criado uma nova categoria de excluídos: os invisíveis dos R$ 400. A continuidade desse benefício depois de 2022 também não está garantida, mesmo com a definição de que o programa será permanente na PEC dos Precatórios.

Do lado do governo, a promessa é ampliar o número de beneficiários, dos atuais 14,5 milhões para 17,9 milhões, segundo previsões do Ministério da Cidadania à equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. É um custo adicional de R$ 54 bilhões ante a previsão inicial de R$ 34,7 bilhões para 2022. 

Oficialmente, porém, a equipe do ministro da Cidadania, João Roma, diz que com, a promulgação da PEC dos Precatórios, trabalha para ampliar o número de contemplados pelo novo programa para cerca de 17 milhões de famílias o mais breve possível, zerando a fila de espera e alcançando mais de 50 milhões de brasileiros ou um quarto da população.

Aprovado às pressas pelo Congresso, o programa também mal saiu do papel e já foi parou no Supremo Tribunal Federal (STF). Um grupo de parlamentares questiona a mudança feita no Senado que barrou o fim da fila, aprovado na Câmara. Essa mudança foi registrada como ajuste de redação, e a MP acabou não retornando para análise dos deputados.

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O presidente Bolsonaro ainda não sancionou a MP e pode vetar pontos importantes negociados na votação da Câmara, apurou o Estadão. Entre eles, as alterações nos auxílios creche e de inclusão produtiva urbana, este último pago para quem tem vínculo de emprego com carteira assinada. 

Para especialistas, o Auxílio Brasil não representa um passo à frente em relação ao Bolsa Família e as sucessivas gerações de programas de transferência de renda. Um dos mais renomados especialistas brasileiros em desigualdade e pesquisador da Universidade de Columbia, Marcelo Medeiros alerta que com o Auxílio Brasil, o clientelismo político na gestão dos programas de transferência de renda, que ocorria no passado, pode voltar.

Segundo ele, a separação da assistência social da manipulação clientelista de compra de votos e a maior “profissionalização” dos programas começou com o Comunidade Solidária, no governo FHC, e continuou como o Bolsa Família nos governos do PT. “Retirar do uso político foi um grande trunfo e um esforço imenso. Olhar para quem tem direito e quem precisa e não quem o político prefere beneficiar”, diz.

Medeiros defende a criação de um fundo para ser alimentado com recursos ao longo dos próximos anos para garantir que a política social seja usada de maneira anticíclica, com uma reserva para momentos de queda do PIB. Hoje, isso não acontece. Nos momentos de piora econômica, há dificuldade nas contas públicas para direcionar mais recursos aos mais pobres. Na pandemia, diz ele, só foi diferente pelo seu gigantismo de impacto global.

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Relator da MP que criou o Auxílio Brasil, o deputado Marcelo Aro (PP-MG), incluiu correção automática dos benefícios, uma demanda histórica, mas a proposta não avançou por pressão do governo. Apesar disso, Aro considera que a mudança no desenho do programa surtirá efeito, inclusive para estimular a chamada “porta de saída” das pessoas do amparo de proteção social.

Não é o que pensa a Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), grupo que reúne mais de 100 entidades, professores, pesquisadores e ativistas sociais que lutam pela implantação da renda básica, um benefício em dinheiro entregue incondicionalmente a todos, sem necessidade de testes de meios ou requisitos de trabalho. “Na prática, não traz inovações, o que abre margem para que depois da eleição, seja qual for o vencedor, o programa venha a sofrer modificações outra vez”, diz o presidente da Rede, Leandro Ferreira.

Leilão de pobres 

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A socióloga Letícia Bartholo, que trabalhou na gestão do Bolsa Família, diz que o Congresso esteve a um passo de tornar a transferência de renda aos mais pobres um direito, mas, cedendo à pressão do governo, voltou atrás. “Em 2021, assistimos mais uma vez a uma espécie de leilão dos pobres, em que manobras políticas tomam o lugar da necessidade de se garantir segurança de renda às famílias vulneráveis”, diz Bartholo. 

Segundo ela, o mesmo ocorreu em 2015, quando o então relator do Orçamento e hoje líder do governo, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), tentou cortar um terço das verbas do Bolsa Família. Também em 2018, quando o governo Michel Temer retirou cerca de 1 milhão de famílias do programa de um mês a outro. “Basicamente, os chefes da Esplanada brincam com a pobreza num País onde mais de 20 milhões de pessoas passam fome”, critica.

Presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), considera que é inegável que o Bolsa Família tem conquistas que devem ser preservadas, mas precisa de atualização dos valores e expansão. “Não estou preocupada que mudem o nome do programa e não estou preocupada que isso seja bom ou não para o governo, mas com as pessoas que vão ser excluídas se tivermos um programa mal desenhado”.

Nas negociações da MP do Auxílio Brasil, o Congresso abortou a ideia do governo de permitir crédito consignado (com desconto já no pagamento do benefício) para quem está no programa e conseguiu acabar com o limite de até cinco dependentes por família para o acesso à ajuda. Um preconceito histórico, segundo ela, de que, sem a regra, incentivaria as famílias a ter mais filhos para receber um benefício maior.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos signatários da ação no STF para garantir a proibição de filas na votação do Senado, avalia que o Auxílio Brasil já nasce sob essa incerteza: “O governo queria apenas acabar com o programa que era o Bolsa Família e criar um novo para chamar de seu, criar uma marca eleitoral e fez isso sem nenhum cuidado técnico e com uma negociação nebulosa a ponto de não ter garantia de quantidade de atendidos e a forma de financiamento”. 

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