O índice de inflação que será divulgado no próximo dia 9 virá com certas distorções, porque a pandemia e o confinamento das famílias produziram importantes mudanças na estrutura de consumo.
Itens como refeições fora de casa, serviços pessoais (barbeiro, manicure) e condução, que têm peso importante na cesta de consumo, caíram a níveis residuais. Subiram outros, como farmacêuticos e despesas de supermercado, mas não na proporção inversa da queda de consumo dos itens anteriores. Há fortes alterações tanto na estrutura do consumo de mercadorias e serviços que compõem a cesta média da família brasileira como, também, nos preços. Gasolina e etanol, por exemplo, deixaram de ser consumidos aos níveis anteriores e tiveram expressiva redução de preços.
Os institutos que aferem as mudanças no custo de vida trabalham com uma estrutura de consumo, levantada a partir de longas e minuciosas pesquisas. Essa estrutura varia relativamente pouco nos levantamentos ordinários feitos de um mês para o outro.
Como atesta Guilherme Moreira, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (IPC-Fipe), mudanças de curto prazo nos custos de consumo são impraticáveis, porque esses são levantados com base na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), realizada a cada dez anos pelo IBGE com o objetivo de compor uma fotografia pormenorizada dos hábitos de consumo das famílias.
A última edição da POF é de 2019, com dados coletados em 70 mil lares brasileiros, em 2017 e 2018. A pesquisa contabilizou despesas que antes não existiam, como as feitas com Netflix e Uber. A partir desse levantamento, o IBGE pôde definir a cesta média pela qual calcula todos os meses a variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A mudança ocorreu em fevereiro. (Veja na tabela algumas das ponderações da cesta de consumo.)
Como aponta Moreira, em princípio, não devem ser levados em consideração choques repentinos de preços que logo vão embora e reconduzem a vida à normalidade. O problema é que o atual choque deve durar mais do que durou, por exemplo, a greve dos caminhoneiros, que paralisou o País em maio de 2018 e que, na ocasião, desestabilizou o mercado de combustíveis. Nesse caso, argumenta ele, “não houve mudança de hábito de consumo, apenas uma restrição temporária de oferta”. Parece remota a hipótese de que, desta vez, em dois ou três meses, tudo volte ao normal.
André Braz, coordenador do índice do Ibre-FGV, explica que, por ser essencial para as famílias, a alimentação continuará tendo prioridade no orçamento, mesmo se, por exemplo, o preço do leite subir muito, já que é item essencial para famílias com crianças. “Se antes havia parte do orçamento familiar voltado para compras no mercado e comida fora de casa, agora ele é todo voltado para a alimentação caseira. Houve de fato uma quebra abrupta nos hábitos.”
Outra distorção prejudicou a exatidão dos levantamentos em março e, provavelmente, continuará prejudicando em abril e maio. Trata-se da coleta de preços feitas diretamente nos estabelecimentos comerciais, que em sua grande maioria permaneceram fechados. Produtos com grande aumento de procura não permitiram levantamento adequado de preços. O caso do álcool em gel, aponta Moreira, é um pouco diferente. Embora os estabelecimentos comerciais (farmácias) onde é mais vendido tivessem permanecidos abertos, os preços não puderam ser aferidos porque os pesquisadores não o encontraram nas prateleiras.
Para cálculo do deflator implícito nas Contas Nacionais (números do PIB), fator que permite conhecer a evolução real da renda (descontada a inflação), o IBGE terá outros recursos técnicos para chegar a conclusão mais exata. Mas para a definição da variação do IPCA e de outros índices de preços de um mês para outro, fortes escapadas de curva parecem inevitáveis.
Cabe perguntar como o Banco Central terá condições de cuidar da calibragem da sua política de juros, se tanto a variação do IPCA, régua que serve para conferir a meta de inflação, como a do chamado núcleo de inflação, sofrerão tamanhos desvios. / COM GUILHERME GUERRA