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O conto do vigário

Por Kenneth Rogoff
Atualização:

No próximo mês, o colapso do venerável banco de investimentos americano Lehman Brothers completará um ano. A queda do Lehman marcou o início de uma recessão global e uma crise financeira que o mundo não observava desde a Grande Depressão, nos anos 30. Depois de um ano, de trilhões de dólares de dinheiro público utilizados e muita autoanálise dentro da comunidade política do mundo, aprendemos as lições certas? Temo que não. O consenso geral é de que, se o governo tivesse socorrido financeiramente o Lehman, tudo teria sido apenas um soluço e não um enfarte. Famosos investidores e políticos influentes opinaram que, nessa nossa economia global interconectada, nunca se poderia deixar uma grande instituição financeira como o Lehman ir à falência. Independentemente do quão péssima foi a sua administração - o Lehman basicamente transformou-se numa holding imobiliária totalmente independente dentro da bolha formada no setor de habitação -, os credores de uma grande instituição financeira sempre teriam de ser reembolsados. Do contrário, a confiança no sistema ficaria corroída e o caos se implantaria. Tendo chegado à brilhante conclusão de que uma reestruturação financeira devia ser evitada a todo custo, os governos mundiais decidiram criar uma enorme rede de proteção para os bancos (e todos os países na Europa Oriental), tecida pelos dólares dos contribuintes. Infelizmente, essa autópsia do Lehman era uma utopia. Ela basicamente dizia que, independentemente do tamanho da bolha imobiliária, do quão profundo era o buraco do crédito cavado pelos Estados Unidos (e outros países) e o quão enredado estivesse o sistema financeiro global, nós podíamos ter encontrado um caminho de saída. Se tivéssemos solucionado o problema do Lehman, ido em frente e continuássemos aproveitando o vigor da energia da China, nada de ruim jamais ocorreria. O fato é que os desequilíbrios globais em termos de dívidas e preços de ativos aumentou tanto, atingindo seu clímax nos últimos anos , a ponto de não haver saída. Os EUA estavam dando sinais de alerta de uma profunda crise financeira bem antes de estourar o problema do Lehman Brothers, como Carmen Reinhardt e eu documentamos em nosso próximo livro This Time is Different: Eight Centuries of Financial Folly (Desta vez é diferente: oito séculos de loucura financeira). Os preços dos imóveis residenciais dobraram num curto período, levando os consumidores americanos a não pensar mais em fazer poupança. Os órgãos de decisão política, incluindo o Federal Reserve (Fed, o banco central americano), permitiram que essa festa de crescimento dos anos 2000 continuasse por muito mais tempo. Embriagados com os lucros, os setores bancários e de segurança se endividaram como nunca. Os bancos de investimento transformaram seus negócios de tal forma que seus administradores e conselhos claramente não entenderam. Não foi somente o Lehman Brothers. O sistema financeiro todo estava despreparado para lidar com o inevitável estouro das bolhas do crédito e imobiliária. O sistema chegou a um ponto em que precisou ser socorrido e reestruturado. E não há cenário legal ou político realista em que tal socorro poderia ter sido oferecido sem que um pouco de sangue ficasse nas ruas. Portanto, o colapso de uma grande instituição bancária ou de um banco de investimento foi inevitável como catalisador para a ação. O problema do Lehman Brothers afundar não foi o conceito, mas a execução. O governo devia ter agido agressivamente para proteger a complexa carteira de derivativos do Lehman, mesmo que isso significasse interpretações criativas da lei ou a aprovação de novas leis de controle do sistema financeiro. A verdade é que é difícil fazer tudo isso da noite para o dia, mas os alertas eram muitos. Nos seis meses anteriores ao colapso do Lehman, houve um congelamento lento do crédito global e recessões incipientes nos Estados Unidos e na Europa. Mas quase nada foi feito em preparação. Então, qual é o plano de jogo, agora? Fala-se de regulamentar o setor financeiro, mas os governos temem que isso possa abalar a confiança. Admite-se que o estouro da bolha imobiliária precisa ser absorvido, mas não há disposição para reconhecer que isso implicará anos de lento crescimento do consumo. Reconhece-se que as relações entre China e Estados Unidos têm de ser reequilibradas, mas não se sabe bem como proceder. Nossos líderes e legisladores se convenceram de que, apesar de todas as falhas, o velho sistema é melhor do que qualquer outro que se possa imaginar, e que restaurar a confiança vai resolver tudo, ao menos enquanto eles estiverem no comando. A lição correta a se tirar o colapso do Lehman Brothers deve ser a de que o sistema financeiro necessita de importantes mudanças tanto em termos de regulamentação como de governança. O enfoque atual de uma rede de proteção pode funcionar a curto prazo, mas acabará resultando em dívidas governamentais enormes e insustentáveis, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. A Ásia pode estar disposta a patrocinar o Ocidente agora, mas não perpetuamente. No fim, ela encontrará alternativas, em parte aprofundando seus próprios mercados de dívida. Dentro de alguns anos, os governos ocidentais precisarão elevar drasticamente os impostos, permitir o aumento da inflação, ficar em parte inadimplentes, ou uma combinação dos três. Por mais doloroso que possa ser, é muito melhor começar a colocar os fundamentos da economia em ordem agora. Restaurar a fé é útil e importante. Mas, em última instância, precisamos de um sistema de regulamentação e governança financeira que mereça a nossa confiança. *Kenneth Rogoff é professor de Economia e Políticas Públicas na Universidade Harvard e chefiou a equipe de economistas do Fundo Monetário Internacional

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